* Por Benedito Ferreira Marques
CRIMINALIZAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO DE PESSOA JURÍDICA
No texto anterior, divulgado nesta coluna no dia 6 de maio de 2023, teci algumas considerações teóricas sobre a importância da pessoa jurídica como sujeito do direito. Ousei apresentar, ali, uma atrevida ideia, vislumbrando uma solidariedade ficta entre a Academia Buritiense de Artes, Letras e Ciências – ABALC- e os seus membros, para, num esforço concentrado, viabilizar a realização de ações afirmativas destinadas ao cumprimento dos objetivos estatutários da entidade. Fi-lo, sabendo que o sistema jurídico brasileiro não admite responsabilidade solidária sem expressa previsão legal ou sem a manifestação volitiva do corresponsável. Não sem motivo, ressalvei que a ousadia confessada significava a criação de um instituto jurídico fictício. Não sei se fui compreendido nesse impulso criativo, ou se aquela revelação foi entendida como fantasia de um jurista inconformado. Afinal, o “Direito é um produto cultural, segundo os jusfilósofos.
Esta semana começou com a veiculação
midiática de uma campanha meritória, visando a documentar pessoas físicas em
“situação de rua”, desprovidas de qualquer comprovação de sua identidade, senão
a pobreza dolorosa e a promiscuidade desnuda. À frente dessa auspiciosa iniciativa
o Pe. Júlio Lancellotti – conhecido
por suas ações sociais de largo alcance -, mais uma vez pontificava no cenário.
Os noticiários televisivos focavam rostos alegres e tristes de pessoas carentes,
exibindo a sua carteira de identidade (RG) e até o seu CPF (Cadastro de Pessoa
Física), como se, nesses documentos, residisse a sua cidadania plena; sim, eram cidadãos e não sabiam. Foi ali, naquele
momento informativo, que me lembrei do batistério que nunca tive, a despeito do
batismo celebrado. Minha certidão de registro de nascimento foi expedida tempos
depois, quando fui me inscrever para o exame de admissão ao ginásio, em
Parnaíba (PI), nos idos de 1953. Também era cidadão e, como tal, considerado na
ambição de estudar; estudar e aprender; aprender e ensinar, na concretização do
lema a que me entrego, hoje, produzir
e espargir, tal lamparina acesa com
chamas dançantes na escuridão da sala de um lugar bucólico.
No texto de
hoje, me ocorre a intenção de abordar outra faceta sobre a pessoa jurídica, desta
feita, sob o ângulo de seu enquadramento na ocorrência de delitos ou infrações
de que resultem danos individuais ou coletivos. Para tanto, antecipo o recorte casuístico
na incursão investigativa a que me
proponho, focando apenas um vocábulo que está hospedado na ementa do já
popularizado PL-2630, um
projeto-de-lei que dormita com insônias teimosas nos gabinetes dos que ocupam
cadeiras na Câmara dos Deputados, do Parlamento brasileiro. Por enquanto, a
maioria não o quer como se apresenta na proposta do relator, Deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Comenta-se que
aversão de fortes segmentos da Câmara dos Deputados é o resultado de lobbys regiamente custeados, engendrados
por empresas multinacionais operadoras de plataformas digitais, em defesa de
interesses econômicos inconfessados. As notícias mais recentes dão conta de
divulgações em massa em redes sociais, apregoando que o PL-2630 (já apelidado
de “PL das Fake News”) introduzirá a censura oficial no Brasil – e mais que
isso, decretará o fim da Internet em nosso País. Essas notícias alarmistas, que
se espalham velozmente, alcançando milhões de usuários de redes sociais-,
incomodam incautos e avisados e, por isso mesmo, merecem reação dos bem
intencionados. Esta abordagem tem esse intuito reativo, na convicção de que é
esse o anseio da sociedade esclarecida a que pertenço.
A pergunta que não se cala é: por que não o querem? Respondo para mim
mesmo que o mais sensato é ler o texto da proposição legislativa, e o faço com
avidez. Logo vejo a ementa e leio: Institui a Lei Brasileira de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência na Internet .
A liberdade,
a que se refere a ementa transcrita, tem sido manipulada pelos que se opõem
à aprovação do PL-2630 para disseminar a falsa bandeira de que essa lei vai
banir a “liberdade de expressão” ou coisa que o valha. Nota-se que é um
discurso enganador, pois, ao contrário, as regras preconizadas virão valorizar
e proteger a liberdade de expressão,
se bem aplicadas. Enquanto isso, a transparência,
ali também realçada, vai ser apenas reafirmada como valor intrínseco da
democracia que respiramos, reforçando a disciplina jurídica bem definida na “Lei
Geral de Proteção de Dados”, em vigor desde 2018. Portanto, liberdade e transparência são valores caros e irrenunciáveis na configuração do
Estado Democrático do Direito,
ancorado na Carta Magna do Brasil como fundamento da República.
Destarte, para o limite espacial deste
artigo e para manter a coerência com o título da matéria, basta-me o vocábulo responsabilidade,
que, em sua essência
teleológica, me sugere outro termo igualmente importante no contexto de regras
disciplinadoras do comportamento desaconselhados de empresas e empresários, na
composição do quadro com viés punitivo ou reparatório de outros valores
perdidos. Esse vocábulo tem assento na linguagem jurídica: responsabilização. Ponho-o na interface de outro vocábulo, também
com matiz reparatório de valores ofendidos: criminalização. Desse
confronto comparativo e dialético, é possível retirar a conclusão de que o PL-2630
não revela tanta preocupação com a pena
privativa da liberdade para os transgressores de regras estabelecidas para
situações de conflitos decorrentes do uso da Internet. A impressão que se
extrai é a de que o Estado – assim
entendido como “sociedade
politicamente organizada e estruturada” -, direciona a sua ação disciplinadora
mais para a pecúnia, do que para o cárcere, em face dos desarranjos
comportamentais protagonizados por empresas (pessoas jurídicas) e por usuários
(pessoas físicas), na oferta e uso dos serviços propiciados pela Internet. É
preciso lembrar, neste passo, que o bom senso recomenda cautela nessa
avaliação, em que se admite a compreensão de que a repressão ao crime não se
opera apenas pelo mecanismo das prisões, quase sempre inócuas. Lastimavelmente!
Nesse toar afirmativo de
reflexões pontuais, suponho que pessoas leigas - e quiçá conhecedores
do Direito, por formação acadêmica ou por compreensível curiosidade humana -, sustentam
a impossibilidade de criminalização de uma pessoa jurídica,
a partir do raciocínio simplista de que é surreal o aprisionamento de um ente
invisível. A pessoa jurídica é um ente invisível, por isso que a doutrina
jurídica portuguesa o considera um “ente moral”.
A ideia de criminalização da pessoa jurídica não é tão estapafúrdia, assim.
Tanto não o é, que a matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), em
caso germinado na Bahia, cujo acórdão pode ser encontrado, à farta, nos repertórios
jurisprudenciais. A conclusão da Suprema Corte de Justiça foi pela admissibilidade
de criminalização da pessoa jurídica,
nas hipóteses de prática de crimes
ambientais. É evidente que os Senhores Ministros não trabalharam com ideia
de prisão da pessoa jurídica, mas não a tangenciaram, evidentemente, para as
pessoas físicas cúmplices de tais delitos. É importante esclarecer, aqui e
agora, a bem de uma compreensão lúcida, que a maior Corte de Justiça do País
ancorou o seu entendimento em dois pilares: (1) no princípio da autonomia da pessoa jurídica; e (2) no farto aparato legal adensado na “Lei dos
Crimes Ambientais”, em vigor desde 1998. Esse marco legal dos chamados crimes ambientais, por óbvio, substanciou-se
em princípios e regras albergados na Constituição Federa brasileira de 1988.
O PL-2630, todavia, sequer inclui a
prisão no rol das sanções, porquanto estas se limitam apenas à advertência (com indicação de prazo para a adoção
de medidas corretivas), à multa, à suspensão temporária das atividades e à proibição
de exercício das atividades. Ainda bem que essa limitação sancionatória não
exclui a aplicação subsidiária de outras regras legais nas esferas penal, civil e administrativa, como está
ressalvado no comentado Projeto-de-lei. Isso significa que a identificação de
crimes tipificados em leis penais e administrativas poderão ensejar
procedimentos peculiares que viabilizem medidas sancionatórias para além de
penas pecuniárias, mesmo que sejam arbitradas em expressivos valores.
Não obstante a possibilidade da aplicação subsidiária de outras leis (penais, civis ou administrativas) que possa ensejar mecanismos de caráter punitivo adicionais às sanções preconizadas no PL-2630, ponho em observação a regra que confere competência exclusiva para a aplicação destas sanções ao Poder Judiciário. É lugar comum para os operadores do Direito – principalmente para advogados -, que a morosidade dos processos judiciais tornou-se crônica, quaisquer que sejam as justificativas. Assim, a celeridade que se almeja nos procedimentos sancionatórios para questões tão sensíveis poderá ser comprometida, frustrando expectativas. A menos que se apresentem emendas distribuindo a competência para contenciosos administrativos, em paralelo, a eficácia do projeto será frustrante, o que enseja vaticínios de revisões legislativas em Futuro não distante, para rearranjos na aguardada Lei. Tomara que as emendas previsíveis dos deputados recalcitrantes não fiquem circunscritas aos “fatiamentos” que se anunciam, retardando a aprovação do já famoso PL das Fake News, tão ambicionado pela sociedade.
OUSAR É PRECISO, AVANÇAR É NECESSÁRIO.
SOBRE O AUTOR
- Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1967); cursos de Especializações (Direito Civil – Direito Agrário e Direito Comercial) e Mestrado em Direito Agrário, todos pela Universidade Federal de Goiás; Doutorado em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco; Professor de Direito Civil, na PUC-Goiás (1976-1984) e de Direito Civil e Direito Agrário (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás /UFG (1980-2009). Advogado do Banco do Brasil (1968-1990). Diretor da Faculdade de Direito da UFG (2003-2005) e Vice-Reitor da UFG (2006-2010). Autor de livros jurídicos e não jurídicos (15) e de artigos científicos em revistas especializadas. Conferencista e palestrante em congressos, seminários e simpósios. Tem outorgas de títulos de “Cidadão Pedreirense” (1974), “Cidadão Goiano” (2007) e “Cidadão Goianiense” (1996), além de dezenas de medalhas de honra ao mérito. Pertence ao Quadro de Acadêmico-Fundador da Academia Buritiense de Artes, Letras e Ciências – ABALC, onde ocupa a Cadeira nº6, que tem como Patrono Plínio Ferreira Marques. Colabora com artigos e crônicas para o “Correio Buritiense”.
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