A LITURGIA DO CARGO E A
CRIMINALIZAÇÃO DO PRECONCEITO
“A liberdade de expressão é a
maior expressão da liberdade”. (Ayres Brito, ex-Ministro do STF)
*Por Benedito
Ferreira Marques
Quando o amigo Aliandro Borges me ofereceu um espaço em seu blog Correio Buritiense,
também me concedeu autonomia temática. Compreendi que podia produzir literatura
(prosa e versos), segundo minhas convicções e pensamento, certamente sob a
minha inteira responsabilidade. Com essa convicção, resolvi fazer uma
autocrítica sobre os meus últimos escritos e verifiquei que os seus conteúdos
têm enveredado por uma linha crítica de viés claramente político, bem ao meu
gosto, mas talvez em desagrado de quantos visitem minha coluna. Bem por essas
razões, pretendia produzir, desta vez, um enredo menos satírico. As
circunstâncias do momento, no entanto, me impõem um comportamento ainda marcado
pela indignação - justificada ou não, aos olhos de quem o observa.
Tem-se
visto que, nas últimas semanas – para não dizer todos os dias -, surgem fatos
impactantes na vida política nacional, que reclamam posturas corajosas de quem
se considera afetado por indignações compreensíveis, ou para fins pedagógicos.
A opinião pública é construída pela diversidade de opiniões dos que expõem
pensamentos, ideias e concepções, cabendo, ao leitor, a sua opção favorável ou
desfavorável. No meu caso, sinto-me aguçado a dizer o que penso e o que me
incomoda, como fiz em mais de 30 anos de magistério no ensino superior,
lecionando a Ciência Jurídica. A metodologia que adotava era instigar os alunos
a fazerem as suas escolhas entre as opiniões doutrinárias contrapostas de
autores brasileiros e estrangeiros, acerca de certos institutos jurídicos
controversos. Não o fazia com conotação político-partidária, até porque jamais
me filiei a qualquer partido, e porque entendia que o ensino do Direito só se
compreende com o exercício da dialética.
Não sem motivo, atrevo-me a fazer uma incursão
audaciosa do que penso sobre o comportamento de governantes em todos os níveis,
refletindo sobre as suas consequências no plano jurídico. O título dado a este
texto remete o leitor a uma indagação compreensível: o que tem a ver a “liturgia do cargo” com a “criminalização do
preconceito”? Explico com exemplos colhidos em observações pontuais de
fatos veridicamente ocorridos. O primeiro ocorreu em 1985. Quando o
ex-Presidente José Sarney – que assumiu, inesperadamente, a Presidência da
República, em lugar do Presidente eleito Tancredo Neves, internado na véspera
da posse -, foi visitar o ilustre paciente. Ao sair do hospital, os repórteres
o cercaram e lhe fizeram a pergunta óbvia: como estava o Presidente enfermo. A
resposta foi sóbria e animadora. Levantou o dedo polegar da mão direita para
cima, como sinal de positivo. Mas, antes de assim proceder, ressalvou que
estava quebrando a “liturgia do cargo”. Goste-se ou não do ex-Presidente José
Sarney, há que se reconhecer que ele sabia que a postura de um governante –
principalmente do Presidente da República -, tem que guardar prudência nas
palavras, cautela na manifestação de opiniões, e respeito com seus
interlocutores. Lastimavelmente, não é o que vem acontecendo no atual governo
federal, quando o primeiro mandatário da nação brasileira precipita o pedido de
demissão do Presidente do BNDES com ameaças públicas pela TV; quando qualifica
o Presidente da Câmara dos Deputados como “general” da PEC da Previdência, em
tom irônico; quando transforma um militar de alta patente em fruta, chamando-o
de melancia (verde por fora e vermelho por dentro); quando dá abraço “hétero”
no Governador de Pernambuco; quando crítica, publicamente, a decisão colegiada
do Supremo Tribunal Federal sobre a criminalização da homofobia; quando promete
indicar para a primeira vaga que surgir no STF um “terrivelmente evangélico”;
quando considera duvidosos os dados de desmatamento divulgados pelo INPE
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais); quando diz, em entrevista à
imprensa, que quer “beneficiar, sim, o seu filho”, indicando-o para ser
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos e, para complementar o elenco de
asneiras, quando utiliza o termo “paraíba” (muito usado no Sudeste brasileiro
em tom de galhofa) para qualificar os Governadores do Nordeste, e, ainda,
quando classifica o Governador do Maranhão como “o pior deles”, e o trata como
“cara”, em tom depreciativo.
Todos
esses registros foram reais, públicos e notórios. Não inventei nada. É evidente
que a quebra da “liturgia do cargo” foi useira e vezeira.
Na vertente jurídica, há nuances que afrontam
a Constituição Federal e Leis infraconstitucionais que, em tese, justificariam
reprimendas. Começa pelo sentido pejorativo
atribuído aos nordestinos. Ainda que tenha passado a negar a intenção de
ofender, a emenda ficou pior do que o soneto, pois disse que tinha se referido
apenas aos Governadores da Paraíba e do Maranhão. Essa confirmação da grosseira
ofensa, por si só, basta para malferir um dos mais eloquentes princípios elencados
no artigo 3° da Carta Magna, qual seja o inciso IV, assim redigido: Art.
3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ...IV –
promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer
outras formas de discriminação. Compatibilize-se o preceito
constitucional acima transcrito com o artigo 78 da mesma Constituição, assim
expresso: Art. 78. O Presidente e o
Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional,
prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar
as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a
integridade e a independência do Brasil.
Não precisa ser jurista, operador ou
professor de Direito, para compreender que o “Senhor” Presidente da República
cometeu um “ato falho”, como qualificou o ex-Ministro do STF, Ayres Brito, no
programa “Roda Viva” da TV Cultura, na noite do dia 22.07.2019. Para mim,
particularmente, o ex-Ministro do STF, seguramente um dos melhores que já
passaram pela Suprema Corte de Justiça, apresentou uma opinião para além de
respeitosa, cautelosa e educada, pois não tenho nenhuma dúvida de que o
preconceito restou absolutamente claro, a menos que se queira considerar “letra
morta” a alocução “sem preconceito de origem”, contida no transcrito inciso IV do
artigo 3° da Constituição Federal.
Ainda no campo jurídico desta abordagem,
considero oportuno registrar que acompanhei os votos dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal, no julgamento da ação que ali tramitava, na qual as partes
interessadas postulavam a chamada “criminalização da homofobia”, à míngua de
uma lei expressa nesse sentido. O voto magistral do Ministro Celso de Melo (relator), com mais de 150
laudas, convenceu-me de que foi correta a aplicação do Art. 4°, §1°, da Lei
n°7.716, de 5.01.1989 - que define os crimes resultantes de preconceito
de raça ou de cor -, por considerar crime o ato de quem, “por motivo de discriminação de
raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou
origem nacional ou étnica (esse parágrafo foi acrescentado pela
Lei n°12.288, de 2010). Convenceu-me a
decisão, justamente porque o cerne da questão repousava exatamente no profundo
significado da palavra “discriminação”,
realçada no já citado inciso IV do artigo 3° da Lei Maior do Brasil. Quem jurou
cumprir a Constituição e as Leis, e não o fez, merece ao menos o repúdio dos
indignados, porque dificilmente haverá um corajoso que provoque um processo,
político ou judicial.
No caso concreto em análise, vejo que a
incontinência verbal do “Senhor” Presidente da República malferiu a alocução “sem
preconceito de origem”, uma das formas de discriminação de maior
expressão, que desagradou a milhões de nordestinos, não apenas aos que moram
nos 9 estados da região Nordeste, mas a tantos outros espalhados Brasil a fora.
A ofensa manifestamente raivosa merecia um pedido de desculpas e o
reconhecimento público do erro cometido, e não apenas dizer-se “cabra da
peste”, por ser casado com uma filha de um cearense, e de que “ama o Nordeste”,
para uma plateia reduzida e seletivamente recrutada, na inauguração de um
aeroporto na Bahia. Chegou a cobrir a cabeça com um chapéu de couro, à moda
nordestina, o que constituiu mais uma ofensa à inteligência daquele povo.
O
Nordeste e os nordestinos merecem, acima de tudo e de todos, mais RESPEITO, “Senhor” Presidente!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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