Por Benedito Ferreira Marques
“Minha terra tinha
palmeiras, onde cantavam os sabiás; as palmeiras que existiam não existem mais,
onde cantavam os sabiás. ” (Parodiando Gonçalves Dias).
Um vídeo assustador
postado no meu aparelho celular, por um ambientalista da região, acordou-me na
madrugada de um sábado setembrino, no prenúncio da primavera. Quatro tratores possantes
- dois de cada lado, segundo uma voz feminina captada fortuitamente -, atrelavam
correntões com argolas dificilmente quebráveis. Arrastavam o que houvesse em
frente, inclusive palmeiras seculares de babaçu, que abundavam num povoado do
Município de Buriti, no Estado do Maranhão. Sob os olhares tristonhos de moradores
assustados, operava-se uma tragédia, ao vivo e em cores. A voz feminina exclamava
o horror; estava impotente para reagir ou fazer qualquer coisa, ou coisa
qualquer. Era a força da força sobre a fraqueza dos fracos; era o terror dos
terrores; era o fantasma real; eram os gemidos das dores sentidas nos corações
já débeis; era a morte da vida, era a vida morrendo; era o começo do fim; era o
fim em si mesmo de um projeto consciente de desertificação à vista testamentada
para gerações vindouras!
- Que reserva de preservação ambiental que
nada, a licença foi dada pela SEMA e é isso que interessa” –
Poderiam bravejar os
operadores das máquinas destruidoras. Não lhes importava - nem aos que lhes encomendaram o “serviço” -, se
as terras eram devolutas ou não; se
houve “grilagem” em algum tempo por empresas falidas; se a documentação está ou
não em controvérsia procedimental; se as posses têm ou não respaldo em
documento lícito; se tais posses foram cedidas a preço vil ou não, a depender
da ingenuidade de cessionários incautos,
passadas de pais a filhos, ao longo dos anos; se as negociações se deram sob a
coação ostensiva de policiais chamados para harmonizarem desavenças ocasionais
- como noticiado em programa radiofônico. Era assim o processo; são assim as compras e
vendas e os desmontes das tendas!!!
É de sabença
elementar que “ordens se cumprem, partam de onde partirem”. Mas não se pode
olvidar que ordens ilícitas comprometem os seus leais cumpridores. Se a
ilicitude das ordens se esconde em estratégias clandestinas de fins de semana,
a criminalização se acentua e se apresenta crua. Basta vesti-la e apresentá-la
nos cancelos dos tribunais, confie-se não nos que os compõem.
No episódio lastimável
que me chegara em vídeo, ao despertar de um sono profundo, não era um sonho que
rememorava, ainda bocejando; era uma realidade filmada. O ronco ensurdecedor das
máquinas pesadas, que afetava os tímpanos vulneráveis de qualquer ouvinte, era o
som da destruição irrefreável de uma paisagem que não mais será vista. De longe
dizia, de longe exclamava, aflito, como “filho da terra-berço” que sou, balbuciando
impropérios de indignação justa: “isso é
crime, é crime, é crime...”. Ninguém me ouvia no silêncio da madrugada fria;
ninguém me alentava com um consolo oportuno; ninguém me animava o sofrer
solitário. Fazer o quê, se a distância me separa ao longe, me impedindo ações?
Dizer o quê de uma tragédia anunciada, na morte barulhenta da chapada
moribunda?
- Não, não pode ser...Pode sim, sim senhor,
não se iluda – me dizia a voz da consciência em momento de reflexão
necessária.
- Não te animas com as leis humanas, se nem as
leis divinas se cumprem mais? - me repetia
a voz muda.
Era a voz das
reflexões ensejadas. E me perguntava, inquieto, para mim mesmo:
- Onde estão as carpideiras nordestinas de
choros intermitentes ao redor do ataúde roxo? Onde estão as vozes chorosas de muita
gente em velório? De um dos cantos
do ambiente fúnebre, poderia ecoar um clamor inútil:
- ”Avisem fulanos, beltranos, sicranos e
outros quantos possam; convidem a todos para o enterro das matas mortas, que
silenciaram a “Mãe-Natureza”.
Ninguém lhe ouvia; o
silêncio reinava para os apelos inconsequentes do visitante em luto.
Morreu a floresta
nativa; morreu a terra emudecida. Não foi de morte morrida; foi de morte
matada. Deitaram ao chão palmeiras altas de anos crescidas; assassinaram as
palmas onde cantavam os sabiás. Não há mais coco de amêndoas fartas do sustento
mínimo na prática do escambo d`outrora, de outros bens de consumo, pelas
heroínas quebradeiras, no catar cansativo dos frutos caídos. Não há mais palmas
para a coberta das choupanas; não há mais “olhos de palhas” para cobrirem os
casebres; para as esteiras e abanos; nem para portas de choupanas inseguras
para o abrigo dos pobres; nem carvão durador das cascas lascadas a machados
afiados, que se equilibravam nas pernas treinadas das artesãs rurais.
A
paisagem é de desertos abertos para olhos banhados; banhados de lágrimas de
olhares incrédulos! O cenário lembra as senzalas de escravos acorrentados,
carregando bolas de ferro nas pernas imóveis. Agora são máquinas de cavalos de
força, carregando correntes para derrubarem árvores enraizadas.
Não creio; me recuso
a crer que a sigla feminina do órgão controlador e fiscalizador de reservas
decretadas seja um prostíbulo com genitálias oferecidas a
desejos reprimidos, em troca do “vil metal, que ofusca a própria luz do sol”,
no dizer vulgar. Não; não é nessa
direção que se encaminha o meu grito. Não; não posso crer nem pensar nisso. Não
posso acreditar que os papéis do litígio se prestem ao silêncio conivente de
quem tem o dever de inibir ecocídios impunes. Não creio que autoridades fechem
os olhos para a cegueira voluntária e consciente de regras traçadas. Não é difícil
interpretar a lei. O artigo 50-A da “Lei dos Crimes Ambientais” (Lei n°9.605/98),
de linguagem simples, direta e objetiva, e de fácil compreensão, permite o
saber jurídico do caso por qualquer um. Ali está, com as mesmas letras do
alfabeto aprendido nas salas mais simplórias de escolas primárias: “Desmatar, explorar economicamente ou
degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou
devolutas, sem autorização do órgão competente. A pena prevista para esse
crime é de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos), além de multa arbitrável. O
mesmo artigo, em seu parágrafo segundo, aumenta a pena por um (1) ano para cada
milhar de hectares. O mesmo preceito também normatiza que não caracteriza crime
a conduta praticada para atender à necessária subsistência imediata pessoal do
agente ou de sua família.
Ainda no plano
normativo, não posso negar a informação de que, em princípio, pela redação do
artigo 20, inciso dois, da Constituição Federal, as terras devolutas pertencem à União, quando indispensáveis à preservação ambiental, entre outras finalidades. Mas também não posso sovinar outra informação
– aliás, já objeto de abordagem nesta coluna -, que o saudoso Governador Jackson Lago instituiu a APA (Área de Proteção
Ambiental) “Morros Garapaenses”,
envolvendo alguns municípios, entre os quais o de Buriti. Só essa circunstância
já bastaria para se assegurar que o ostensivo desmatamento aqui noticiado
merece contemperamentos, até porque a notícia foi veiculada em programa
radiofônico - e, portanto, se tornou público, o que legitima qualquer
comentário crítico e jurídico. A área devastada seria de dois mil hectares,
cuja documentação se diz controvertida. Ainda que a controvérsia esteja em nível
administrativo no órgão ambiental do Estado do Maranhão (SEMA), a eventual
autorização fornecida, sem a fiel observância das normas legais pertinentes
pode ser objeto de ações judiciais, no plano criminal e cível. Devo informar,
outrossim, que a primeira Constituição da República (1891), por seu artigo 64,
destinara as terras devolutas aos
Estados federados, salvo as que fossem necessárias à União, nos casos
especificados. Daí se segue – sem prejuízo do interesse ambiental tratado no
artigo 20, inciso dois, da atual Constituição -, que a questão relacionada com
terras devolutas se resolve pela via da regularização fundiária, na forma da
lei. Não sei se as terras desmatadas no Município de Buriti (MA) foram
regularizadas pelo grupo falido chamado João Santos, com a observância do
devido processo legal. Presumo que não tenham sido, dessas terras, como de
outras, nos limites do meu conhecer de jus-agrarista.
O meu espaço de atuação
é estreito, seja porque estou longe demais, seja porque não tenho em minhas mãos
a documentação para meticuloso e gratuito exame de jusagrarista, com olhos de
ambientalista. Mas são largas as estradas para toda a população do Município de
Buriti, por iniciativas de entidades constituídas de representação legítima de
segmentos sociais – como a AMIB, por exemplo -, ou por mobilização
popular em grandes eventos de concentração e de protestos, sem discursos político-partidários,
mas com a motivação calcada na conscientização
ambiental. O mote é simples: os males agora praticados poderão gerar a desertificação precoce dos nossos
recursos naturais, em prejuízo das atuais e futuras gerações. Ao que tudo
indica, os desmatamentos que estão ocorrendo têm a marca da insensatez e a conotação
indisfarçável de ações planejadas e conscientes, cuja criminalização merece ser
objeto de judicialização. Basta o querer; basta o agir; basta o resistir. De
minha parte, cá de longe, como buritiense atento e preocupado, só me resta
pedir ao povo de minha querida terra
MOBILIZAÇÃO, JÁ!
DESERTIFICAÇÃO, JAMAIS!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
Comentários
Postar um comentário
O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem. Ofensas pessoais, mensagens preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, ou ainda acusações levianas não serão aceitas. O objetivo do painel de comentários é promover o debate mais livre possível, respeitando o mínimo de bom senso e civilidade. O Redator-Chefe deste CORREIO poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema proposto.