COLUNA SIM, É O BENEDITO - A DERRUBADA DO MURO À MODA BRASILEIRA


 Abordagem jurídica sobre a PEC da prisão em segunda instância.

A DERRUBADA DO MURO À MODA BRASILEIRA

         Acredito que muitos tenham observado que a soltura de Lula coincidiu com as celebrações dos 30 anos da derrubada do “Muro de Berlim”, que dividia a Alemanha em duas –  a Oriental e a Ocidental. Sem dúvida, dois acontecimentos que merecem nossas reflexões, ao menos no plano de suas essências. Naquele, ocorreu uma reunificação; neste último, o   acirramento de uma divisão de correntes cada vez mais notórias, ao menos no plano político-ideológico. Ninguém desconhece que temos dois “brasis”, apaixonadamente divididos na percepção de conceitos e práticas políticas. Para a corrente do Poder, tudo que diz respeito à inclusão social é “coisa de socialistas”, e, portanto, de “comunistas”. Para a outra, as privatizações já efetivadas e as que estão programadas e em curso avançado constituem retrocesso, exclusão social e comprometimento da soberania nacional.  Para quem analisa criticamente as posições dessas correntes, há uma certeza: tudo contribui para o fortalecimento da DEMOCRACIA, duramente reconquistada em 1985. Essa democracia sustenta-se numa pilastra inquebrável: a CONSTITUIÇÃO, que não é nem pode ser considerada um “muro divisório” desses dois “brasis”, suscetível de derrubada por meio de picaretas humanas irresponsáveis. Este é um dos pontos de reflexão que todos os bons brasileiros devem ter em mente em suas elucubrações diuturnas. Não esquecermos que somente a vontade popular manifestada em urnas pode derrubar essa muralha.
         É verdade que o povo brasileiro elegeu, no ano passado, um novo Presidente da República, novos Governadores e novos parlamentares em nível federal e nos Estados federados, nos quais depositou suas esperanças e confianças. Mas essa eleição não uniu o povo, que continua dividido, porque o pleito foi maculado pela ausência de quem liderava todas as pesquisas, e tudo leva a crer o tolhimento de uma candidatura sólida foi destroçada por esquemas estabelecidos nos esconderijos noturnos.  O impedimento   do líder mais popular não foi digerido por uma parcela considerável da população (quase a metade dos eleitores), e isso deixou fissuras, até porque o espaço terminou sendo ocupado por uma candidatura messiânica, como já ocorrera antes na história republicana brasileira. Mesmo fugindo dos debates, essa candidatura gerou uma onda avassaladora, graças às redes sociais bem utilizadas.
         O que mídia comenta é que o novo Executivo federal e os novos membros do Parlamento nacional – embora bastante renovado -, não conseguiram pautas capazes de unificar as correntes político-ideológicas. Ao contrário, estas permaneceram insufladas e se digladiam com ferocidade espantosa. Essa concepção tripartida entre esquerda, centro e direita não passa de eufemismo. As cicatrizes de candidatos viáveis ainda não sararam. Subsiste o clima hostil a arranjos amistosos para a busca de coalisão necessária.  
         Desse modo, a soltura do maior líder popular da redemocratização até aqui soou como uma derrubada do muro divisório do Brasil, polarizado entre as forças antagônicas. Quem não está do lado dessas correntes, acomoda-se, na espera do desfecho desse duelo político. Para a corrente que desejava ver o líder político “apodrecer” na cadeia, a sua soltura, depois de 580 dias, significou um “balde de água fria”; e, para quem estava com um “nó na garganta”, representou o desate desse nó.  Daí a assertiva de que esse fato produziu um impacto com dimensão ainda não aferida, a despeito de uma momentânea calmaria.
         No entanto, setores frustrados em seus devaneios, alimentados por desejos de vinditas indisfarçáveis,  apressam, com visível açodamento e matiz casuística, a tramitação de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), para ressuscitar a ideia de prisão em segunda instância, numa afronta bestial ao entendimento recente do Supremo Tribunal Federal, que, há menos de duas semanas, adotou  entendimento contrário às aspirações agora aguçadas, com base no princípio da presunção da inocência (ou, como queiram, da “não culpabilidade”), princípio que está ancorado no inciso 57 (LVII) do artigo quinto (5°) da Constituição Federal. Foi exatamente esse entendimento que abriu a cela do ex-Presidente Lula. Os que não gostaram, agora querem reverter a situação.
         A narrativa aqui desenvolvida busca instigar o leitor, diante desses fatos, auscultando lhe o seu pensamento sobre a essência da questão posta. É um tema que merece ser pensado e repensado, em qualquer tempo e em qualquer lugar. É o  que  me proponho fazer, aqui e agora. 
         A liberdade prontamente deferida ao ex-presidente Lula causou, sem dúvida, uma grande repercussão, graças à difusão da mídia nacional e estrangeira, em tempo real. Não credito esse impacto, todavia, aos dois pronunciamentos que ele fez em Curitiba (PR), no dia 8.11, e em São Bernardo do Campo (SP), no dia seguinte, até porque foram carregados de emoções reprimidas. O crédito vai para as expectativas que se abrem no cenário político nacional com a abertura de um novo debate já para as eleições vindouras (2020 e 2922). Espera-se que as discussões passem a girar em torno de propostas, porque o Brasil não mudou, passados mais de 300 dias de governo.  Esta é a minha percepção, respeitando as de quem pensa em contrário.
         Explica-se, portanto, o desengavetamento da chamada “PEC DA PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA”, 1que passou a ocupar o movimento do “LULA LIVRE”. Quem deseja a sua aprovação segura suas “picaretas”, para derrubar o muro brasileiro, que é a “presunção de inocência”. Afinal, foi o próprio ex-Presidente Lula quem disse, certa feita, que não gostara de ser Deputado Federal (como o foi, uma vez), porque a Câmara era composta, em sua maioria, por “picaretas”!  A metáfora parece proposital, mas não é.  Trata-se de uma observação à parte, já que este instrumento foi utilizado na derrubada do Muro de Berlim, fato histórico que me inspira esta narrativa e seu título.
         O debate sobre a pretensão de emendar a Carta Magna, dela retirando o princípio da “presunção de inocência”, a meu ver, vai além de um mero enfrentamento ao Supremo Tribunal Federal, como pondera os Presidentes do Senado e da Câmara. O que demonstram os articuladores desse afã é o temor de verem o maior líder político brasileiro na atual quadra da história republicana do Brasil subir em palanques, promover caravanas país afora, com seus discursos rouquenhos, mas incisivos, desmistificando o que o atual governo está fazendo. Esse parece ser o objetivo da inciativa parlamentar, a partir dos discursos que pronunciam no Senado e na Câmara Federal.  
         As propostas que estão sendo discutidas têm duas direções: 1ª.) - emendar a Constituição, para retirar o inciso 57 (LVII) do artigo quinto (5°), que alberga a chamada “presunção de inocência”; e 2ª.) - introduzir modificações no artigo 283 do Código de Processo Penal, cujo teor foi julgado compatível com a Constituição. Os defensores dessas mudanças pontuais estão embalados pela insinuação sutil do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias Toffoli, segundo cujo voto que desempatou o placar de 5 a 5 dos membros da Corte, sinalizando que o Parlamento podia sacramentar, em lei, a execução provisória, a partir da confirmação de sentenças condenatória por um Colegiado. É com esse “canto de sereia” que se agitam parlamentares (do Senado e da Câmara)!
            Aí está o busílis, é dizer, o “x” da questão.
         Cá, para mim, os digníssimos legisladores das duas Casas que compõem o Congresso Nacional estão se comportando como torcedores apaixonados de clubes de futebol, que, após a derrota do seu time, culpam e xingam os árbitros, tangenciando regras que, agora, podem ser corrigidas por revisões em telas, à beira do campo, chamadas VAR. Esquecem que o detalhe está na linha. Se a falta cometida pelo atleta ocorreu fora da área, não há pênalti; se dentro, o árbitro marca a penalidade máxima.  A moderna tecnologia é capaz de identificar, com precisão, o que realmente ocorreu, ainda que o jogo atrase vários minutos inquietantes para os atletas e para as duas torcidas.
         Esse clima de incertezas está acontecendo com os projetos em discussão no Parlamento. São projetos que alimentam as paixões e fomentam ilusões, ainda que o jogo já tenha sido encerrado e os pontos contabilizados para o time vencedor.    Agora já não comporta discutir se Lula devia estar ou não na cadeia, por causa de sua condenação ter sido confirmada em duas instâncias superiores (TRF-4 e STJ).  O debate, a partir do julgamento encerrado no dia 7.11.2019, no STF, somente poderá girar em torno da tese da “presunção de inocência” e, se retirada esta do texto constitucional, o “Lula volta para o presídio de Curitiba (PR). E ainda há muita gente que alimenta essa esperança, respirando ódio, sentimentos de vinganças e outros prazeres inconfessados! Vale dizer, há paixões e intransigências que cegam, que anulam a própria razão.
         Para mim, essas paixões e intransigências expressas em manifestações vocalizadas por uma grande parcela da população brasileira (somos mais de 200 milhões, entre eleitores e não eleitores) que não consegue esconder o fanatismo doentio, a alimentar egos parlamentares, de olhos voltados para pleitos eleitorais futuros. A razão deixa de ser o eixo nos desideratos oportunistas, cedendo espaço para maniqueísmos inconsequentes, pois, quando a razão perde espaço para a paixão, o que se coloca como resultado é a intolerância, ainda mais se os desejos embutidos nas ações praticadas não se sustentam em pilastras normativas sólidas.
         Esse é o cenário que, a meus olhos, se apresenta.
         Não consigo entender como as modificações aventadas podem ocorrer, sem banir a cláusula pétrea da “presunção da inocência”, a não ser pela via de uma Assembleia Nacional Constituinte. A presunção da inocência tem acento garantido entre as matérias que não podem sofrer emendas, ao teor do artigo 60, parágrafo quarto (§4°) inciso quatro (IV) da Constituição Federal. A meu juízo, o Poder Legislativo federal pode até alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal, através de Projeto de lei, mas, certamente, a discussão retornará à Suprema Corte, com os atuais ou com futuros Ministros, por conta da cláusula pétrea sedimentada no preceito constitucional acima lembrado (CF, art. 60, §4°, inciso IV).
         Noutra vertente, se mudarem o artigo 283 do Código de Processo Penal, não terão a garantia de que o ex-Presidente Lula e outros tantos beneficiados com a decisão do STF, porque encontrarão óbice em outra cláusula pétrea, claramente disposta no mesmo artigo quinto (5°) em cujo inciso XL, da Carta Magna, está a regra:
            “(...) a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
         Para mim, alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal é mexer em matéria de natureza penal, incidindo, assim, o que está posto no inciso acima transcrito. Mais claro do que isso é impossível!
 Destarte, a pretensão de modificar a Constituição ou o artigo 283 do Código de Processo Penal – ainda que venha a ser aprovada no Congresso Nacional -, não terá o condão de reconduzir o ex-Presidente Lula ao presídio, sem questionamento imediato junto ao Supremo Tribunal Federal, porquanto não se pode retirar o princípio da presunção de inocência da “Lei Maiordo País, nem a alteração no artigo 283 do Código de Processo Penal reconduzirá o ex-Presidente Lula ao xadrez Qualquer alteração legislativa no momento, além de soar como estridente casuísmo,  não  servirá aos desígnios dos insatisfeitos com a soltura de Lula,  a menos que  este venha a praticar delitos suscetíveis de prisão em flagrante ou em caso que admita prisão preventiva.  
 Assim, o que os opositores de Lula podem fazer, ao invés de modificarem a legislação vigente com propósitos deliberadamente casuísticos e visivelmente direcionados para que haja nova prisão do ex-Presidente, é enfrentá-lo no debate público ou nas urnas, caso consiga a anulação os processos que lhe pesam agora (caso Tríplex do Guarujá e Sítio de Atibaia), ou a própria absolvição por falta prova consistente, no segundo caso.   É pegar ou largar, no dizer vulgar. 
 Quem detém mandato legislativo para elaborar leis não pode, a o meu juízo, tangenciar regras abrigadas no corpo da Constituição. O exercício do mandato para o qual foi eleito o Parlamento com esse viés, com todo respeito, é pretender derrubar muros inquebrantáveis. Não há picaretas que derrubem esse muro, que foi construído com ideais democráticos vivificados nas manifestações de praças e ruas.

SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais.NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros

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