*Por Benedito Ferreira Marques
DENTRO E FORA DAS QUATRO LINHAS
Acredito que pouquíssimas pessoas desconhecem a expressão “dentro das quatro linhas”, muito utilizada nos últimos tempos por políticos, juristas, jornalistas e tantos outros que aparecem nos mais diferentes meios de comunicação de massa. Também creio que a grande maioria do povo brasileiro conhece – ou pelo menos viram e ouviram, pela televisão ou pelo rádio -, uma interlocução protagonizada por um conhecido narrador de futebol e um comentarista de arbitragem. “Pode isso, Arnaldo”. A resposta vinha sem titubeios: “Não; a regra é clara”.
Penso, todavia, que incontáveis telespectadores
e ouvintes desconhecem que o “estar dentro das quatro linhas” e a interlocução dos
apresentadores de transmissões esportivas, deitam raízes profundas em outra
alocução igualmente conhecida, de dimensão constitucional: “estado
democrático de direito”. Sim, é o que se lê no primeiro artigo da
Constituição Brasileira, em nível de fundamento da República.
Sendo
assim, estar dentro das quatro linhas
e observar regras (claras ou não)
sintetizam o estado democrático do
direito, porque este é um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil. Direitos e deveres de todos os cidadãos brasileiros estão
estabelecidos dentro das quatro linhas; não apenas das quatro linhas de um campo
de futebol ou de qualquer outro espaço para a prática de esportes. Todos temos
o dever de cumprir e respeitar regras; regras que balizam o comportamento de cada
um, para poder exercer os seus direitos. É nesse equilíbrio dialético entre
direitos e deveres que se sustenta a democracia plena.
Pois
bem. Estamos vivenciando - até com certa perplexidade -, a corrupção envolvendo
jogadores de futebol e apostadores de jogos ilícitos, comprometendo a lisura
das competições e, por tabela, minando a crença na segurança jurídica dos
resultados. No caso, os males estão dentro e fora das quatro linhas,
conspurcando o estado democrático do
direito no espectro futebolístico, com esses arranhões de matiz criminoso.
Não
faz muito tempo, o Governador de São Paulo, ao vivo e em cores, numa entrevista
provocada, afirmou, em tom autoritário: “Quem invadir terras em São Paulo vai pra
cadeia”. Referia-se ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra”) que, durante o mês de abril, desenvolveu ações em vários Estados, invadindo ou ocupando – não importam os verbos -, propriedades produtivas ou improdutivas
– não importa a classificação legalmente estabelecida. Tais movimentos eram
explicados como estratégia de luta pela reforma agrária. Podia ser, não duvido,
mas tenho dúvidas em seus resultados, porque entendo que o desiderato
reformista depende de vontade política, fundamentalmente, na medida em que esta
pressupõe alocação de recursos financeiros de elevada monta para a
implementação dos assentamentos dos beneficiários.
Com essa compreensão, pareceu-me um
exagero do Governador paulista, pois não é tão simples assim. Como discurso, o
Governador posicionou-se dentro das quatro linhas, mas, na prática, pulou para
fora das quatro linhas, ao ignorar o estado democrático de direito, e este – do alto do seu assento como preceito
fundamental -, reclama a observância
de regras e princípios que funcionam como pilares de sustentação do regime
democrático, quais sejam: o devido processo legal, o contraditório
e a ampla
defesa. Até admito que aquela autoridade, por sua formação acadêmica,
desconheça a parêmia, segundo a qual os princípios
e regras compõem o sistema normativo. O que não se concebe,
sem objeções, é o menoscabo a esses pilares. Não se admite que qualquer
autoridade dê ordens de prisão ao seu
talante, muito menos em lances populistas diante de holofotes oportunistas para
plateia selecionada, como se todos os telespectadores não fossem esclarecidos.
Posturas desse jaez enfraquecem a autoridade e põe em dúvida a seriedade da
fala.
Deveras,
é através do devido processo legal
que o cidadão produz o seu contraditório e
sua ampla defesa. A afirmação
categórica de que toda ocupação é invasão
não se sustenta, como não se
sustenta o argumento de que toda propriedade é produtiva apenas porque o
proprietário tem um documento registrado em cartório, nem sempre com
procedência legítima. Noutro ângulo,
ocupar pressupõe espaço vazio; e ocupar terras vazias é denunciar ausência de
cumprimento da função social da
terra. O ordenamento constitucional brasileiro garante o direito de
propriedade, sim, mas o condiciona ao cumprimento da função social, que somente
se configura com a satisfação simultânea de requisitos estabelecidos na própria
Carta Magna, corroborando o que já dispunha o Estatuto da Terra, lançado em 1964, durante o regime militar. Esses
requisitos não exigem esforço interpretativo: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições
que regulam as relações de trabalhos; e a exploração que favoreça o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores. Propriedade que não atende esses
requisitos em sua integralidade não pode ser considerada produtiva. E, se não é
produtiva, é suscetível de desapropriação para fins de reforma agrária,
circunstância que substancia o discurso do MST, ao menos como estratégia
política.
Se tanto não basta para a correta
compreensão dessa temática, é preciso saber que o conceito legal de propriedade não se confunde com o de posse. Nem sempre o proprietário é
possuidor, e nem sempre o possuidor é proprietário. O proprietário tem a
faculdade de ter a posse, assim como o possuidor poderá obter a propriedade, pelos
meios legais, evidentemente. Nessa mesma linha, faz-se imprescindível entender
que somente a posse potencializa o
cumprimento da função social, porque esta pressupõe a exploração econômica
racional e adequada, nas diferentes atividades agrárias (lavoura, pecuária,
extrativismo etc.). Escrituras ou outros títulos de propriedade quaisquer que não
induzam produção - porque esta depende da atividade agrária -, não se garantem,
por si sós, porque somente o exercício da posse propicia o real cumprimento da
função social.
Para
quem, como eu, sustenta a soberania do estado
democrático de direito, não pode concordar com ocupações/invasões de
propriedades produtivas, mas também não pode aceitar, em silêncio, asneiras que
abstraiam o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, ainda mais quando se verbera, sem reservas, que o
simples fato do esbulho possessório
conduz ao cárcere, pela simples ordem de um governante, sem a observância do devido processo legal. Se existem liminares previstas e quase sempre
concedidas em ações possessórias imediatamente
aviadas por quem se julga ofendido em suas posses, devem ao sistema
jurídico-processual, que é o mecanismo defensivo adequado para a manutenção do
estado democrático do direito. Se assim não se procede, tem-se a ultrapassagem
d as quatro linhas, e essa postura não condiz com o estado democrático do
Direito que aqui proclamo, convicto e resolutamente.
OUSAR É PRECISO, AVANÇAR É NECESSÁRIO.
SOBRE O AUTOR
- Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1967); cursos de Especializações (Direito Civil – Direito Agrário e Direito Comercial) e Mestrado em Direito Agrário, todos pela Universidade Federal de Goiás; Doutorado em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco; Professor de Direito Civil, na PUC-Goiás (1976-1984) e de Direito Civil e Direito Agrário (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás /UFG (1980-2009). Advogado do Banco do Brasil (1968-1990). Diretor da Faculdade de Direito da UFG (2003-2005) e Vice-Reitor da UFG (2006-2010). Autor de livros jurídicos e não jurídicos (15) e de artigos científicos em revistas especializadas. Conferencista e palestrante em congressos, seminários e simpósios. Tem outorgas de títulos de “Cidadão Pedreirense” (1974), “Cidadão Goiano” (2007) e “Cidadão Goianiense” (1996), além de dezenas de medalhas de honra ao mérito. Pertence ao Quadro de Acadêmico-Fundador da Academia Buritiense de Artes, Letras e Ciências – ABALC, onde ocupa a Cadeira nº6, que tem como Patrono Plínio Ferreira Marques. Colabora com artigos e crônicas para o “Correio Buritiense”.
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