ALÉM DA LUPA - A UTOPIA DE CRIMINALIZAR SUJEITOS INDETERMINADOS

 *Por Benedito Ferreira Marques

A UTOPIA DE CRIMINALIZAR SUJEITOS INDETERMINADOS

   Parte I

    Como cidadão politizado, acompanho a vida nacional nos seus mais diferentes ângulos, com base nas informações da mídia ao meu limitado alcance visual. E, para os propósitos que me animam a manter esta coluna - propósitos esses voltados para temáticas pontuais do momento, à luz dos meus saberes e da minha experiência de vida -, não posso me furtar ao dever cívico de expor meus pensamentos críticos sobre o que observo, independentemente do lugar dos fatos e de quem, por interesse ou não, se dê ao trabalho de ler os meus escritos,  produzidos, evidentemente, sob minha inteira responsabilidade. Não me importam os incômodos pontuais, nem me incrimino por posições audaciosas, marcadas pela consciência crítica.

   Pois bem. Nesta segunda quinzena de maio (2023), a mídia vem noticiando, com certo estardalhaço, a constituição e instalação de comissões parlamentares de inquérito, a revelar uma insaciável volúpia investigativa, alimentando egos de alguns senadores e deputados, legitimamente eleitos – ressalvo.  Destaco, entre tais comissões, a que se convencionou chamar  “CPI do MST””, porque a temática motivadora se situa na área do meu saber, explorada nos  longos anos de magistério superior. Afinal, meus cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) me inspiraram pesquisas no campo do jusagrarismo. 

    Com esse Introito explicativo, ponho sob lupa três indagações apriorísticas: (i) o que motiva a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito; (ii) para que serve o relatório final; e (iii) qual o interesse nacional que as preside, consideradas as balizas constitucionais que norteiam a matéria -  que, de resto, substanciam a formação do pensamento político dos cidadãos.

   Nessa linha, penso que ninguém ignora que   a Lei mais importante da República Federativa do Brasil é a Constituição. Também acredito que a grande maioria dos brasileiros sabe que esta Lei Maior prevê a possibilidade de instalação de comissões parlamentárias de Inquérito para investigarem fatos determinados causadores de tensões na sociedade.  Com essas convicções, vejo que a primeira indagação formulada tem resposta na afirmação de que tais comissões objetivam a investigação de fatos concretos e identificação dos sujeitos que os protagonizam. A resposta à terceira indagação está no produto final dos trabalhos, consubstanciados num relatório, do qual constarão os indiciamentos. Esse documento vai ao Ministério Público, a cujo órgão compete formular as possíveis denúncias e, com isso, a instauração de processos criminais, dos quais poderão ou não resultar punições. Esse é o roteiro.

  Com esse feitio metodológico, direciono minha análise para reflexões fundadas em mandamentos normativos hierarquicamente superiores, base de sustentação de regras inferiores aplicáveis ao caso concreto. Para tanto, não posso dispensar um olhar pragmático nos fundamentos da República Federativa do Brasil, encontradiços no primeiro preceito constitucional, onde leio, como valores: cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa e o pluralismo político.

   A partir desses fundamentos republicanos, vejo que a apelidada “CPI do MST” é natimorta em seus fins.  Primeiro, porque mira sujeitos indeterminados (homens, mulheres e crianças), sabendo-se que eventuais ações penais que venham a ser instauradas pelo Ministério Público – com base do relatório da CPI -, há que incriminar um a um, já que qualquer pena deve atender ao princípio da individualização, por expressa determinação constitucional e até mesmo pelo senso comum de leigos. De mais a mais, o segundo mandamento constitucional é categórico: a pena não passa do criminoso. Nada tão óbvio!

    Em segundo lugar, a CPI de que cuido nesta abordagem traz a marca da insensatez, porque mira “invasões” já desfeitas, pelo mecanismo processual das liminares. Possíveis danos que tenham causado aos esbulhados também podiam (e podem) ser reclamados nas mesmas ações possessórias; portanto, dentro do “devido processo legal”, que constitui um dos mais salutares princípios em prol do estado democrático do Direito. De certo, os senhores deputados – por mais que bravejem à frente de holofotes generosos -, não podem ultrapassar os limites das chamadas “quatro linhas”, a menos que queiram, também ali, escancarar porteiras frágeis para “a boiada passar”, ao arrepio dos mandamentos constitucionais postos. Não duvido que isso aconteça, porque a CPI da COVID indiciou até Ministro, e este terminou sendo eleito com larga votação!

    No meu pensar de jusagrarista, o que está colocado em debate não são propriamente as “invasões/ocupações”, em si mesmas, mas, sim, interesses contrapostos que envolvem o “direito de propriedade” (produtiva ou não) e o “direito à propriedade”, cujo acesso tem sido dificultado aos menores e despossuídos, ao longo da História brasileira.  Daí as pressões desenvolvidas pelos movimentos sociais, que se legitimam quando, na outra ponta, se exibem títulos viciados (a conferir) e se constata o descumprimento da função. Cada caso é um caso.

    Não foi por acaso que, no dia 18 de setembro de 1850, foi editada a Lei n°601 (apelidada de “Lei de Terras”), que instituiu   procedimentos de regularização de posses extensas, como também a legitimação de pequenas posses, ali definidas. Também não foi sem razão que o Governo Militar de 1964 editou o ainda hoje vigente Estatuto da Terra, no qual foi explicitada a ideologia da função social da propriedade, como condição inarredável para a garantia do direito de propriedade. Também ali foram instituídos os mecanismos para a reforma agrária. E não foi sem motivação cívica que a Constituição de 1988, em pleno vigor,   (chamada “cidadã”), embutiu um capítulo inteiro, visando à reforma agrária, recepcionando o Estatuto da Terra..

  Nesse contexto histórico-legal, não abstraio a existência de mecanismos processuais que garantem a posse legítima, através das ações de manutenção e de reintegração, nos casos de turbação ou esbulho. Mas não posso sovinar a quem me lê e ouve, o conhecimento sobre a existência da posse, que nem sempre está atrelado à propriedade – como, enganosamente, muitos pensam.  A posse é instituto jurídico autônomo, que viabiliza o exercício do direito de propriedade, e este, por sua vez, pressupõe o cumprimento da exigida função social.

   O debate que se instala em torno dessa tormentosa “CPI do MST” não pode passar ao largo dessas noções teórico-legais, sob pena de produzir resultados trôpegos e desprovidos de consistência jurídica, a desautorizarem quaisquer ações honestamente pretendidas.

    Pelo que tenho observado nas entrevistas de alguns membros, percebo inconsistências nos discursos argumentativos, transparecendo escopos de vinditas represadas ou de propósitos políticos e eleitorais mediatos, deturpando o verdadeiro sentido de uma comissão parlamentar de inquérito. Como cidadão, repugna-me a utilização de mecanismos atravessados no Congresso Nacional, que parece se contaminar de um vírus, para o qual a única vacina é a renovação do Parlamento brasileiro.

   Imbuído de propósitos direcionados para a construção de uma consciência política calcado em argumentos sustentáveis, divido essa abordagem em duas partes, reservando-me para outras incursões pertinentes e conclusivos no próximo texto.

                   OUSAR É PRECISO. AVANÇAR É NECESSÁRIO.

    SOBRE O AUTOR






- Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1967); cursos de Especializações (Direito Civil – Direito Agrário e Direito Comercial) e Mestrado em Direito Agrário, todos pela Universidade Federal de Goiás; Doutorado em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco; Professor de Direito Civil, na PUC-Goiás (1976-1984) e de Direito Civil e Direito Agrário (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás /UFG (1980-2009). Advogado do Banco do Brasil (1968-1990). Diretor da Faculdade de Direito da UFG (2003-2005) e Vice-Reitor da UFG (2006-2010). Autor de livros jurídicos e não jurídicos (15) e de artigos científicos em revistas especializadas. Conferencista e palestrante em congressos, seminários e simpósios. Tem outorgas de títulos de “Cidadão Pedreirense” (1974), “Cidadão Goiano” (2007) e “Cidadão Goianiense” (1996), além de dezenas de medalhas de honra ao mérito.   Pertence ao Quadro de Acadêmico-Fundador da Academia Buritiense de Artes, Letras e Ciências – ABALC, onde ocupa a Cadeira nº6, que tem como Patrono Plínio Ferreira Marques. Colabora com artigos e crônicas para o “Correio Buritiense”.

 

 

 

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