DOIS PONTOS DE VISTA SOBRE A PRISÃO DO SENADOR DELCÍDIO AMARAL


CONTRA PRISÃO: Para (não) entender a prisão de um Senador pelo STF
*Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa*
Se o Senador Delcídio do Amaral praticou ou não as condutas descritas na decisão que “decretou sua prisão em flagrante” somente o devido processo legal irá apontar. Somos professores de Processo Penal e acreditamos em duas questões preliminares a partir da defesa intransigente da Constituição: a) Senadores devem ser investigados e punidos caso cometam crimes; b) não é permitida a prisão preventiva dos Senadores. Não se trata de gostar ou não dos dispositivos constitucionais, pois se assim acolhermos, quando a regra constitucional não nos fosse conveniente, poderíamos, simplesmente, modificar o sentido normativo por contextos, tidos por nós mesmos, e no caso o STF, graves? A gravidade, na linha de Carl Schmitt, autorizaria a decisão do “Soberano Constitucional” de suspender os dispositivos constitucionais, instaurando-se a exceção? Abrimos espaço para em nome da finalidade justificar o que não se autoriza? Seria uma faceta do ativismo?
Acabamos de ver um dos exemplos de como não deve decidir uma Suprema Corte em um Estado Democrático de Direito e como não devem cinco Ministros agir por emoção. É muito preocupante quando o Supremo Tribunal Federal determina a prisão de um Senador da República contrariando explicitamente a Constituição, afrontando a soberania popular e o poder constituinte originário. Obviamente que o Senador não tem imunidade absoluta, mas tem. Di-lo a Constituição e é preciso que se respeite o art. 53 da Lei. Nada justifica uma tal teratológica decisão, nem a corrupção, nem crime de lavagem de dinheiro, nem integrar organização criminosa ou outras tantas outras “iniquidades”, como disse a Ministra Cármen Lúcia, ao acompanhar o voto do Ministro Teori Zavascki.
Em suas decisões, a Suprema Corte deveria observar (e não tem feito) as normas constitucionais (e, eventualmente, se for o caso, as convencionais). É um dever republicano. É isso que esperamos dos Ministros. Não esperamos vindita, nem arroubos, nem frases de efeito, nem indignações inflamadas e retóricas. Deixemos isso para políticos populistas e programas policiais!
A Constituição da República é muito clara: desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.” (art. 53, § 2º, da Constituição Federal).
Quais são os crimes inafiançáveis referidos na decisão do Ministro Teori Zavascki? Aprende-se nos primeiros anos da Faculdade de Direito, por mais medíocre que seja o Professor de Processo Penal, serem eles o racismo (não a injúria racial), a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, os definidos como crimes hediondos, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, nos termos do art. , XLII e XLIII da Constituição da República. Quais destes crimes o Senador da República praticou? Na decisão não está escrito. Devemos aguardar a denúncia.
Citou-se na decisão o art. 324, IV do Código de Processo Penal. Mero malabarismo que, obviamente, não se admitiria nem em uma decisão de um Juiz pretor (se ainda existissem no Brasil tais figuras), quanto mais de um Ministro do Supremo Tribunal Federal de quem se espera “notável saber jurídico”. Este artigo só seria aplicável ao caso se fosse possível a decretação, ao menos em tese, da prisão preventiva do Senador, o que não é, pois, como vimos acima, ele tem imunidade formal dada pela Constituição da República, pelo Constituinte originário (aliás, ao longo da referida decisão são citados artigos do Código de Processo Penal que estão justamente no Capítulo III, do Título IX, que trata da Prisão Preventiva). Dito de outra forma, a invocação do art. 324, IV, do CPP, somente poderia ocorrer se o pressuposto – decretação da prisão preventiva – fosse possível.
Logo, o art. 324, IV do Código de Processo Penal não serve para estabelecer o conceito de inafiançabilidade, para efeito de excepcionar o art. 53 da Constituição da República. Trata-se apenas de um impedimento para a concessão da liberdade provisória com fiança. Mas isso é óbvio! Um crime não se torna, ao menos no Brasil, inafiançável porque estão presentes os requisitos da prisão preventiva. Assim decidindo o Supremo Tribunal Federal acabou aditando a Constituição para prever um sem número de novos casos de inafiançabilidade. Ainda mais que o caput do art. 313, ao contrário da redação anterior à reforma de 2008, não mais limita a decretação da prisão preventiva, aos crimes dolosos. Portanto, ainda que em tese, até o autor de um crime culposo (se envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, por exemplo) pode ser preso preventivamente (inciso IV).
Mas ainda há coisa pior, muito mais grave, se é que é possível. Utiliza-se como elemento fático para fundamentar a decisão uma gravação feita por um dos interlocutores do Senador, presente ao seu espaço, ou seja, uma escuta ambiental não autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, único órgão do Judiciário que poderia fazê-lo, tendo em vista que se tratava de alguém detentor de prerrogativa de foro junto à Suprema Corte. Ora, sabemos que este tipo de ato investigatório invasivo da privacidade é admitido no processo penal brasileiro de forma excepcional (Lei nº. 12.850/13), mas sempre, e necessariamente, a partir de ordem judicial, o que não foi o caso. Sequer a Comissão Parlamentar de Inquérito teria tal poder, nada obstante o art. 58 da Constituição da República.
Tratou-se, portanto, de uma prova obtida ilicitamente! Escancaradamente ilícita. Mais ilícita impossível! Jamais poderia ser utilizada contra alguém. A favor sim, nunca contra. Isso é elementar. O resto é querer punir por punir, “exemplarmente”, como disse o Ministro Celso de Mello, ao referendar a decisão do Ministro Teori Zavascki. Sem contar a possível gravação conveniente dada a entrega posterior para fins de troca na delação premiada homologada, sequer pelo interlocutor da gravação, mas por terceiro, com os riscos do induzimento e surpresa. Aliás, o STF no julgamento da Ação Penal n. 307-DF, deixou dito o Min. Celso de Mello:
“A gravação de conversa com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento precisamente por realizar-se de modo sub-reptício, envolve quebra evidente de privacidade, sendo, em consequência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio. (…) A gravação de diálogos privados, quando executados com total desconhecimento de um dos seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando o órgão de acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório.”
É até muito compreensível que os Ministros tenham se sentido ofendidos com o diálogo captado ilegalmente, mas completamente inadmissível que tais Magistrados tenham sido levados pela emoção a ponto de rasgarem a Constituição que prometeram cumprir. E nosso papel de professores de Direito é, com as vênias de praxe, apontar o nosso desacordo.
Será que eles avaliaram o precedente que acabaram criando quando, por exemplo, admitiram uma escuta ambiental clandestina para legitimar a prisão preventiva ou a prisão em flagrante? Se assim foi para um Senador da República, assim será para um ladrão de uma sandália de borracha no valor de R$ 16 ou de 15 bombons artesanais no valor de R$ 30 ou mesmo de dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48, já que estes, segundo o mesmo Supremo Tribunal Federal, praticaram crimes (Habeas Corpus nºs. 123734, 123533 e 123108, respectivamente).
Uma última observação: se houve prisão em flagrante, não era o caso do preso ser apresentado imediatamente ao Ministro Teori Zavascki para a audiência de custódia, como determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos? Assim entendeu o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 347.
Calmon de Passos escreveu o seguinte:
“a crítica ao positivismo e o incentivo ou ênfase no papel criador do intérprete, que é também aplicador do direito, tem o grave inconveniente de ser um despistamento ideológico. Na verdade, uma regressão. Esquecemo-nos, nós, juristas, que não trabalhamos com assertivas controláveis mediante a contraprova empírica. Nosso saber só se legitima pela fundamentação racional (técnica, política e ética) de nossas conclusões. Se não nos submetermos à disciplina da ciência do Direito e aos limites que o sistema jurídico positivo impõe, estaremos nos tornando criadores originais do direito que editamos ou aplicamos; consequentemente, nos deslegitimamos por nos atribuirmos o que numa democracia é inaceitável – a condição de deuses (se somos pouco modestos) – ou nos tornamos traidores de nosso compromisso democrático (se temos vocação para déspotas).[1]
Então, escolham Ministros da 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal: ao ignorarem a Constituição da República, os senhores e senhoras arvoraram-se em instaurar e decidir em exceção, no mais lídimo ativismo. É a nossa reflexão como Professores de Processo Penal que cumprem a Constituição
Salve-se quem puder e confira, agora, sempre, se o seu interlocutor não está gravando! Vale, vale tudo…
*Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
*Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

A FAVOR DA PRISÃO: Delcídio foi preso em flagrante por crime “inafiançável”?
* Publicado por Luiz Flávio Gomes - 6 horas atrás
O senador Delcídio Amaral foi preso em flagrante na manhã do dia 25/11/15. Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável” (CF, art. 53§ 2º). O flagrante foi justificado pelo ministro Teori Zavascki por se tratar de crime permanente. Qual crime? Fazer parte (integrar) crime organizado (da Petrobras – Lei 12.850/13, art. ). O crime permanente (que dura no tempo) realmente permite a prisão em flagrante em qualquer momento (CPP, arts. 302 e 303).
Resta perguntar: mas se trata de crime inafiançável? O crime organizado, em si, é afiançável. Mas “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva”, o crime se torna inafiançável (CPP, art. 324IV). Note-se: a lei fala em “motivos” (não em pessoas que podem ser presos preventivamente).
O senador entrou nessa situação de inafiançabilidade porque tentou obstruir a investigação de um crime. Ofereceu dinheiro para Cerveró não fazer delação premiada (contra ele) e esquadrinhou uma rota de fuga do país (para o próprio Cerveró). Tentou prejudicar a colheita de provas. Tudo foi gravado pelo filho do ex-diretor da Petrobras (e entregue para o Procurador Geral da República, que pediu a “preventiva” do senador).
A interpretação da Constituição que preponderou na 2ª Turma do STF foi a seguinte: crime permanente (integrar crime organizado) admite o flagrante; os abomináveis atos imputados ao senador são causa de decretação de prisão preventiva (logo, torna o crime inafiançável). Crime permanente + situação de inafiançabilidade (motivo para decretação da preventiva) = prisão em flagrante. Estão atendidos os requisitos constitucionais (diz o STF, em sua interpretação).
Em síntese: o senador abusou da regra três. Ser corrupto é uma coisa já deplorável, mas interferir na investigação “já é algo que vai além do absurdo”. É a sensação de impunidade (reprovadíssima por Cármen Lúcia e Celso de Mello) que leva os corruptos poderosos a praticar um absurdo atrás de outro (como emitir bilhetes para destruir provas).
Desde 2001 (EC 35/01) os deputados e senadores podem ser processados pelo STF, sem licença da Casa respectiva. Neste momento o Poder Jurídico de controle começou a tomar força. O poder é exercido conforme o resultado das forças condensadas dentro do Estado. O Poder Jurídico de controle (PF, MPF e juízes) está ganhando força (a cada dia) dentro da conformação do Estado Democrático brasileiro (só não vê quem não quer). Por sua vez, os políticos estão perdendo força (estão completamente deslegitimados, porque cuidam mais dos seus interesses particulares que os da população). O poder não tem vácuo. Se uma força perde, é porque outra ganha. Se o STF convalida a prisão em flagrante de um senador da República, é porque o poder jurídico está se institucionalizando.
Mais: Logo após a ditadura militar havia receio de que se prendesse parlamentar indevidamente. Com quase 30 anos de Constituição, a realidade agora é outra. A interpretação do STF é republicana (ninguém está acima da Constituição). Ninguém pode fazer o que bem entende, conforme seu capricho. Já é hora de aposentar os caciques e coronéis. Ninguém é dono do Brasil (ou não deveria ser). No Estado de Direito todo mundo tem limite. Nem sequer votação secreta foi conseguida (o Senado decidiu manter a prisão em flagrante por 59 votos a 13, em votação aberta). Isso significa que a opinião pública foi relevante. E que a decisão do STF, por unanimidade, de confirmar o flagrante, foi respeitada. A democracia brasileira, de vez em quando, dá sinais de vida. As instituições têm que se fortalecer (seguindo a Constituição Federal). A era é de fanatismos e fundamentalismos. Só o STF pode garantir o Estado de Direito contra os corruptos poderosos e fanáticos.
Como o senador está preso em flagrante (algo inusitado na redemocratização), impõe-se urgentemente a apresentação de uma acusação formal (pelo PGR). Não é o caso de se converter essa prisão em flagrante em preventiva (trata-se de uma prisão em flagrante absolutamente sui generis). Se há base para a prisão, tem que haver suporte suficiente para a denúncia. Compete ao STF receber ou não a denúncia. Em seguida (no caso de recebimento) o processo terá andamento normal, com a decisão do STF (muito provavelmente condenatória). Mais um político fará sua Accountability indo para o cárcere.
O efeito dominó de tudo quanto acaba de ser narrado pode dar-se de duas maneiras: (a) outros parlamentares que estejam cometendo crime permanente e que tentem obstruir qualquer investigação podem também ser presos em flagrante (nesse figurino se enquadra, muito provavelmente, Eduardo Cunha, cuja prisão já é esperada há tempos); (b) o senador Delcídio pode optar pela delação premiada (e aí se derruba mais outra parte relevante da Ré-pública Velhaca, a começar pelo próprio Renan Calheiros, um dos representantes mais destacados da oligarquia neocolonialista). É o que se espera (evidentemente dentro do Estado de Direito).
Miscelânias admoestatórias
A ministra Cármen Lúcia afirmou (quando da confirmação do flagrante): o “crime não vencerá a Justiça”. “Um aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade e impunidade e corrupção. Em nenhuma passagem, a Constituição Federal permite a impunidade de quem quer que seja”, apontou.
O decano do STF, ministro Celso de Mello observou que, no Estado Democrático de Direito, “absolutamente ninguém está acima das leis, nem mesmo os mais poderosos agentes políticos governamentais”. A seu ver, a ordem jurídica não pode permanecer indiferente a “condutas acintosas de membros do Congresso Nacional, como o próprio líder do governo no Senado ou de quaisquer outras autoridades da República que hajam incidindo em censuráveis desvios éticos e reprováveis transgressões alegadamente criminosas, no desempenho de sua elevada função de representação política do povo brasileiro”.
“Quem transgride tais mandamentos, não importando sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados, expõem-se à severidade das leis penais e por tais atos devem ser punidos exemplarmente na forma da lei. Imunidade parlamentar não constitui manto protetor de supostos comportamentos criminosos”, completou o ministro Celso de Mello.
Último a votar, o presidente da Turma, ministro Dias Toffoli, afirmou que “o que o juiz tem que fazer é decidir de acordo com o rule of law (estado de direito – ou seja [império da lei]), que é o que essa Corte historicamente faz. Hoje se cumpre o rule of law quando o ministro relator traz para referendo do colegiado uma decisão de extrema gravidade, para verificar se a decisão está de acordo com parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição Federal. Precisamos incorporar esse padrão do rule of law à cultura brasileira, que não pode mais ser a cultura do “jeitinho”, das tratativas ou das relações pessoais, afirmou Toffoli.


*Luiz Flávio Gomes: Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas] ]

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