UMA HISTÓRIA POUCO CONTADA: ESCRAVOS BRANCOS - QUANDO CAÇADORES DE PELES CLARAS SEMEAVAM O TERROR NA EUROPA
Escravos europeus, senhores africanos: uma situação insólita que só nos últimos tempos está sendo objeto de estudos aprofundados pelos historiadores. O quadro que temos daquela época, quando os cristãos eram chamados de “ouro branco” nos mercados norte-africanos, ainda está recoberto por uma pátina de descrições folclóricas.
Por:
Equipe Oásis/BRASIL247
Duas naves alongadas se aproximaram da popa da
barcaça Francis. Os homens a bordo da Francis, uma pequena embarcação de carga
que em 1716 ia de Gênova para a Inglaterra, estremeceram de terror: aquelas
naves são xebecs, navios de três velas usados pelos caçadores de homens brancos.
Eles vêm do norte da África, e os marinheiros da Francis sabem bem o que lhes
espera: a escravidão. Todos perderão a liberdade, e muitos a própria vida.
Serão jogados em celas pútridas, serão torturados e humilhados, maltratados até
a morte. Poucos conseguirão rever a pátria.
O mercado de escravos de Argel em um desenho europeu de 1700. Os prisioneiros europeus eram acorrentados, desvestidos, examinados como atenção, muitas vezes espancados e depois comprados por mercadores que os revendiam para que executassem trabalhos forçados ou como remadores nas galés.
OURO BRANCO
Escravos europeus, senhores africanos: uma situação
insólita que só nos últimos tempos está sendo objeto de estudos aprofundados
pelos historiadores. O quadro que temos daquela época, quando os cristãos eram
chamados de “ouro branco” nos mercados norte-africanos, ainda está recoberto
por uma pátina de descrições folclóricas.
No século 19, na Europa, o exotismo oriental estava
na moda, sobretudo na pintura e demais artes plásticas (veja o quadro “Mulher
branca sequestrada e levada ao harém”) e obras do gênero constituíam um filão
muito lucrativo. Esse modismo também encontrou ressonância na produção
literária naqueles tempos. Mas os historiadores, curiosamente, nunca levaram o
fenômeno realmente a sério. Hoje, um livro do historiador norte-americano
Robert Davis traça um panorama radicalmente diverso.
Segundo Davis, não menos de um milhão de europeus
foram escravizados e obrigados a servir os seus senhores africanos. Entre 1580
e 1680, em Argel, Túnis, Trípoli e em muitas outras localidades do litoral
norte-africano, viviam estavelmente cerca de 35 mil escravos brancos.
Procurando calcular quantos homens tinham de ser
capturados para manter estável esse número, levando-se em conta as fugas (menos
de 1%), resgates (4%), mortos pela peste que, na África, se espalhava com
espantosa regularidade, Davis estimou que a cada ano fosse preciso capturar
pelo menos 8.500 pessoas, ou seja 850 mil indivíduos no período entre 1580 e
1680.
1,25 MILHÃO DE
ESCRAVOS BRANCOS
Para toda a época da escravidão, de 1500 até 1800,
Davis estima “com boa aproximação” um número total de 1,25 milhão de europeus
reduzidos à escravidão. E ele se refere apenas às cidadelas dos caçadores de
escravos no Mediterrâneo ocidental: Argel, Túnis e Trípoli. Mas também no
Marrocos e no Egito, dezenas de milhares de europeus viviam em escravidão, bem
como no Império Otomano: em Constantinopla, entre os anos 1500 e 1800, havia
uma presença estável de 30 mil escravos.
1,25 europeus deportados para o norte da África entre 1500 e 1800. Mas os africanos negros deportados para as Américas pelos europeus entre 1451 e 1870 foram cerca de 12 milhões.
Os caçadores de escravos do Norte da África
chegavam até a Grã Bretanha. Ao chegar aos portos britânicos, saíam das naves e
invadiam tavernas e igrejas, vestindo roupas longas e com as cabeças
completamente raspadas, empunhando cimitarras e arrastando os clientes das
tavernas ou os fieis que assistiam à missa. Em 1627, um grupo argelino de
caçadores de homens chegou à Islândia, onde sequestrou cerca de 100 homens,
mulheres e crianças.
TERROR NA
ITÁLIA
Mas foi, sobretudo, no sul da Itália onde esses
corsários mais agiram. Em 1543, desembarcaram na península cerca de 12 mil
corsários, um verdadeiro exército que penetrou cerca de 30 quilômetros no
interior das terras. Cerca vez, chegaram a 20 quilômetros do Vaticano. As
milícias locais não ousavam atacar os invasores, claramente superiores em número
e capacidade de combate. A Itália, na época, não existia como nação. O
território italiano era fragmentado em numerosos pequenos Estados e algumas
repúblicas, e os centros de poder estavam quase sempre situados bem longe das
aldeias e pequenas cidades.
Em 1544, os caçadores de homens fizeram 7 mil
prisioneiros no Golfo de Nápoles. Dez anos depois, em 1554, deportaram 6 mil
pessoas residentes em Vieste, na Apúlia. Quando as naves voltavam à casa depois
dessas incursões e desembarcavam os prisioneiros, contam os testemunhos da
época que, nos mercados de escravos do norte da África, “um europeu valia o
preço de uma cebola”.
Algumas vezes as expedições alcançaram um êxito tão
grande que as naves corsárias não conseguiam transportar todos os passageiros.
Estes eram então vendidos com grandes descontos aos seus próprios parentes. Era
o momento em que entravam em ação os agiotas europeus locais que faziam
empréstimos a quem não tinha condições de pagar o resgate de parentes
sequestrados e, como abutres, tiravam proveito da desventura dos seus
conterrâneos. Em situações como essa, os parentes do prisioneiro empenhavam a
própria casa e todos os bens que existiam nelas. Assim, em poucas horas
poderiam abraçar de novo os seus familiares queridos, mas não tinham mais como
viver.
A escravidão foi praticada em toda a parte no mundo inteiro, desde as primeiras grandes civilizações como o Egito e a Grécia. Em Roma, os escravos estavam tão desesperados que, guiados por Espártaco, ousaram se rebelar. Com o advento do cristianismo, aos cristãos foi proibido comprar outros cristãos escravizados (mas a regra não se aplicava aos fieis de outras religiões). Mesmo assim, com essa providência, a escravidão na Europa diminuiu. Mas nos tempos coloniais 12 milhões de negros africanos foram deportados para a América, sobretudo para os Estados Unidos e o Brasil.
Ao redor do ano 1600, o alcance desse fenômeno foi
redimensionado. A vigilância dos litorais melhorou graças à construção de
fortalezas para a defesa e de torres de vigilância, ao mesmo tempo em que
unidades de cavalaria barravam as estradas aos corsários que voltavam para suas
naves carregando o seu botim. A partir daí, inúmeras incursões rápidas
substituíram as grandes partidas de caça aos europeus de pele branca. O número
das vítimas desses “furtos de cristãos” se somava àquele de pessoas capturadas
no decurso de grandes operações espetaculares. As populações europeias
litorâneas buscaram refúgio no interior das terras, em aldeias fortificadas
cercadas por muralhas, sobre as colinas. As zonas costeiras ficaram
despovoadas, as ilhas foram abandonadas. Foi por essas razões que começaram os
ataques de corsários a navios mercantis. Muitas vezes os caçadores se
aproximavam de suas vítimas a bordo de naves já conquistadas, sob falsa
bandeira e vestidos com os uniformes das nações amigas. Entre 1613 e 1621 foram
sequestradas e conduzidas a Argélia cerca de mil navios provenientes da
Inglaterra, da França, dos Países Baixos e da Espanha.
Os europeus capturados eram levados para as cidades
do norte da África, arrastados pelas ruas como animais, espancados e cobertos
de cuspidas por uma multidão que gritava insultos. Eram a seguir levados a
cárceres subterrâneos. Aglomerados nesses celas infectas, viviam em meio a
excrementos, insetos e parasitas. A luz penetrava através de uma abertura
gradeada no teto. Para abandonar a prisão, os escravos tinham de se agarrar a
uma escada de cordas que era jogada do alto.
LEILÃO NO MERCADO
Permaneciam nessas condições até o dia do leilão no
mercado de escravos. Lá, tinham de se exibir saltando, dançando e cantarolando:
os clientes queriam ter certeza que a mercadoria estivesse saudável e em bom
estado. Os potenciais compradores avaliavam a musculatura, examinavam as mãos e
os pés, observavam atentamente os dentes. No mercado se decidia a partida entre
a vida ou a morte. O comprador precisava de um animal de trabalho, queria um
escravo ou escrava sexual, ou simplesmente se tratava de um investimento
especulativo? Apenas nos casos em que o novo proprietário esperasse obter um
resgate elevado pela libertação do prisioneiro, ele evitaria maltratá-lo até a
morte.
Várias torturas infligidas aos escravos: empalados, esquartejados por duas naves, queimados vivos, crucificados, queimados com velas, enterrados vivos, cortados em pedaços, arrastados por cavalos.
PRENDER UM BISPO
ERA COMO GANHAR NA LOTERIA
Por essa razão, os mais procurados pelos caçadores
eram os passageiros ricos que viajavam a bordo de navios: comerciantes,
sobretudo, com familiares dispostos a pagar elevadas somas pelo seu resgate.
Ainda mais que os comerciantes, os bispos da Igreja valiam verdadeiras
fortunas. Espalhara-se o boato de que a Igreja pagava regiamente e sem fazer
alarde pela devolução dos seus dignitários.
O destino mais benévolo tocava geralmente a quem
fosse comprado para trabalhar como serviçal em casas privadas: esvaziar as
latrinas, conduzir camelos, talvez tocar música nos jardins e servir o café.
Mas aos escravos destinados a trabalhos forçados em obras dos governos era
reservado um tratamento duríssimo e impiedoso. Em Argel, tinham de arrastar por
quilômetros blocos de pedra de 20 a 40 toneladas, desde a pedreira de onde
tinham sido extraídos até o cais do porto. E podia ser ainda pior: a forma mais
brutal de exploração do braço escravo era a dos remadores de galés.
A bordo de uma galé, a água de beber era poluída.
Quem não resistia e caía doente era simplesmente jogado ao mar. Os homens
viviam acorrentados aos remos. Não podiam se afastar deles e nem ficar em pé, e
tinham de dormir sentados em filas de 3 a 4 pessoas. Para fazer suas
necessidades, tinham de subir sobre os vizinhos até chegar à borda. Muitos
deles, exaustos, renunciavam a se mover; por isso as galés eram cercadas por um
fedor bestial. Nas galés de guerra otomanas, os remadores permaneciam
acorrentados até mesmo quando a nave permanecia no porto durante o inverno. E,
quando a nave naufragava em batalha, levava os escravos para o fundo.
Muitos escravos acabavam se convertendo ao Islã.
Para os proprietários, a conversão dos escravos era um evento contraditório:
útil para agradar a Alá, mas negativo para os negócios. Os convertidos não
poderiam mais ser tratados de modo desumano. Para quem, por outro lado, se
afastava do cristianismo, a passagem ao Islã significava um pacto com o
demônio. Para o governo inglês esse escravo se tornava um traidor e não podia
mais esperar por qualquer resgate. Com frequência segundo relatos, os
ex-cristãos se distinguiam pelo zelo particular como colaboradores do regime:
“Superam inclusive os bárbaros em matéria de crueldade e espancam os seus
irmãos sem piedade”.
Mercadoria para o harém. A compra de uma mulher branca nessa ilustração.
A ESCRAVIDÃO NO
LUXO
Alguns poucos escravos brancos, no entanto,
conseguiam se sair muito bem. O veneziano Giacomo Colombin, por exemplo,
capturado no mar em 1602, foi cortejado e protegido pelo capitão dos corsários
porque possuía sólidos conhecimentos de engenharia e arquitetura, o que lhe
trouxe grande riqueza: era um escravo, mas morava em um casarão luxuoso sobre
as colinas de Argel. Depois de 30 anos, usando uma nave que ele mesmo
projetara, conseguiu fugir junto a 22 outros prisioneiros.
Tais exemplos mostram que as sociedades
escravagistas do norte da África eram bem mais complexas do que podemos
imaginar. Novas fontes de informação possibilitam uma nova visão da vida social
que se desenrolava nos assim chamados “banhos” de Argel. Desde o início do
século 18, esses bairros-prisão, verdadeiros labirintos de ruelas similares às
modernas favelas, nos quais vivia uma população de muitos escravos, possuíam
algumas capelas para o culto católico, dirigidas por sacerdotes autorizados
pelas autoridades dessas metrópoles dos corsários. Os muçulmanos apreciavam a
ajuda desses padres, tanto no campo pastoral quanto médico. Os religiosos, com
o tempo, conquistaram também um papel cada vez mais importante como agentes nas
tratativas para os resgates. Tais processos, com o tempo, passaram de simples
“vendas a varejo” de seres humanos para um comércio no atacado de
homens-mercadoria.
EM 1816, A ABOLIÇÃO
Os resgates custavam caro: em 646 um emissário
inglês pagou 38 esterlinas por escravo, a renda anual de um comerciante inglês
abastado. A política europeia em relação aos piratas, particularmente a
francesa, permaneceu durante muito tempo caracterizada por hesitações e
cinismos táticos: era mais importante um bom acordo comercial do que o destino
dos escravos. No final do século 18, o rei da Dinamarca enviava a cada ano um
tributo de armamentos aos caçadores de homens para que deixassem suas naves em
paz. Mas com o final das guerras napoleônicas as relações mudaram. Durante o
congresso de Viena entre 1814 e 1815, sob pressão do governo inglês, foi banido
o comércio transatlântico de escravos. Ao mesmo tempo, o almirante inglês Sir
Sidney Smith, chefe da “Sociedade dos Cavaleiros Libertadores de Homens Brancos
Escravizados” lançou a ideia de uma intervenção humanitária no norte da África.
Em agosto de 1816, uma esquadra composta por 18
navios de guerra ingleses, alguns dos quais dotados de mais de 100 canhões, e
com o apoio de naves holandesas, ancorou na baía de Argel. Quando se esgotou um
ultimato, todas as naves abriram fogo, e sobre a cidade de Argel caíram cerca de
50 mil balas de canhão. A frota dos corsários ancorada no porta foi queimada. O
fogo se propagou nas estruturas do porto e dos arsenais, e em pouco tempo se
espalhou por toda a cidade. Argel virou uma ruína. Só nesse ponto foi que o
comandante chefe dos corsários se rendeu e colocou em liberdade todos os
escravos brancos. Logo em seguida, também Túnis, Trípoli e o Marrocos se
apressaram em declarar que a escravidão fora abolida.
A escravidão negra nas Américas, no entanto, durou
muito mais tempo. No Brasil, ela só terminou em 1888, pela pena da Princesa
Isabel, Regente do Império – e a pressão de governos estrangeiros, sobretudo a
Inglaterra
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