A SOLUÇÃO DOS DILEMAS ESTÁ NO MEIO
Por Benedito Ferreira Marques
Um amigo
íntimo postou-me mensagem em que revelava a sua encruzilhada: tem uma chácara
ociosa que precisa ganhar sentido, mas tem os seus sonhos e utopias
sedimentados há mais de 50 anos nesse imóvel. Via-se acossado por convites
tentadores direcionados para ganhos de capital, sentido oposto das utopias e
sonhos acalentados. E tinha que decidir – e rápido, porque as propostas lhe
tentavam. Pediu-me aconselhamento.
Lembrei-me,
logo, de um colega no Banco do Brasil, que costumava dizer: “O
que importa é o vil metal, que ofusca a própria luz do sol”. Não sei se
essa conclusão saiu de sua cabeça ou se ouviu de alguém ou leu em algum texto.
Mas tal pensamento combina com outro,
defendido por muitos: “O que se leva da vida é a vida que se
leva”. Há uma sincronia nesses pensamentos que conduzem a uma
realidade: TER, POSSUIR, ADQUIRIR. É
esse o núcleo do sistema patrimonialista.
Lembrei-me,
também, de que, há alguns anos atrás, em uma palestra a convite, na condição de
professor de Direito Agrário - e, portanto, defensor da “teoria agrarista”
-, sustentei que a “posse” de um imóvel se sobrepõe à “propriedade”, substanciada esta, sempre, num título que lhe garante segurança jurídica no sistema legal,
enquanto aquela se caracteriza pelo fato
da utilização (ocupação útil), mesmo
sem título hábil. A posse é um fato em si mesmo, mas, quase sempre,
está junta com a propriedade titulada. Por isso é que a posse se classifica em
direta e indireta, a depender desse fato. Posso ser proprietário e possuidor ao
mesmo tempo, mas também posso ser apenas proprietário, cedendo a posse direta a
outrem, ficando como possuidor indireto.
À
luz dessas noções teóricas preambulares, o agrarista convicto entende – e
defende -, que a posse é mais importante do que a propriedade titulada, porque
somente ela potencializa o cumprimento da função
social da terra, uma condicionante estabelecida na própria Constituição
Federal, quando assegura o direito de propriedade,
mas sob a condição de cumprir a função social (CF, art. 5°, incisos XXII e
XXII). O legislador, constituinte, todavia, não distinguiu o objeto da propriedade garantida no
referido preceito, deixando em aberto a possibilidade de ser um bem imóvel ou
um bem móvel ou semovente. Não sei se o raciocínio do “Senhor” Presidente da
República tomou por base essas nuances, ao subscrever decretos de
flexibilização de posse e porte de armas de fogo, já que, em
entrevista à imprensa, enfatizou o direito
de propriedade, conforme salientei em outro texto nesta coluna, sob o
título “Tira o tiro”. Certo é que o primeiro mandatário da nação
brasileira instigou – querendo ou não -, o debate sobre propriedade e posse,
enquanto institutos jurídicos. Daí este preâmbulo.
Se
o intérprete considerar a literal disposição do que está na Constituição
Federal (art. 5°, incisos XXII e XXIII), a arma de fogo pode ser objeto de
propriedade, como um bem móvel. Só não consigo enxergar a sua função social. Prefiro, portanto,
encaminhar a minha compreensão de que a Carta Magna, ao garantir o direito de
propriedade, apontou para a “propriedade imóvel”. Este é o mote que me ocorre,
aqui e agora, com o qual atendi à consulta que me foi formulada pelo meu amigo
íntimo, já que o objeto era uma chácara.
Certa
feita – e não faz muito tempo -, em outra palestra para a qual fui convidado,
mantive o entendimento de que a posse é
mais importante do que o direito de propriedade, porque somente ela (a
posse) viabiliza o cumprimento da função social a que se refere o texto
constitucional. O tema proposto para tal palestra foi “A cultura patrimonialista no Brasil”.
Era perfeitamente compreensível que eu iniciasse a minha fala com uma
incursão na fascinante temática do “direito de propriedade”, tendo por objeto o
imóvel. Ao formular o enredo, minha memória me conduziu aos tempos da
juventude, quando ouvi um conterrâneo, próspero comerciante naquela época,
vangloriar-se de ter 14 escrituras de imóveis guardadas em seu cofre, sem
nenhum cultivo, mas cheios de palmeiras de babaçu. Para ele, o que importavam
eram as escrituras. Certamente, comungava do entendimento de que “quem
compra terra nunca erra”. Era um latifundiário inconsciente. Mas também
era a realidade da época, realidade que ainda perdura e perdurará por muito
tempo, enquanto não houver uma readequação do sistema de distribuição de terras
no Brasil, porque é uma cultura arraigada desde o período colonial, com a
entrega de léguas de terras a Martim
Afonso de Souza, nos idos de1531. Naqueles tempos iniciais de nossa
história, a distribuição das terras descobertas por Pedro Álvares Cabral começou com a criação das Capitanias Hereditárias, adotando-se, como título de propriedade,
as chamadas “Sesmarias”, instituto jurídico importado de Portugal. Nasceu, ali,
e subsiste até hoje, a cultura patrimonialista no Brasil.
Pois
bem. O meu amigo estava entre o título de
propriedade de uma bela chácara, cobiçada por muitos, inclusive pelo seu
vizinho, e a necessidade de dar-lhe um
sentido econômico ou social, embora a tivesse adquirido para a
concretização de seus sonhos de viver uma velhice saudável e prazerosa.
Na linha
ideológica dos agraristas, fazer o imóvel “cumprir a sua função social” é
dar-lhe destinação adequada e racional; é propiciar o bem-estar do proprietário
e de quem nele trabalhe; é preservar e conserve os recursos naturais; é
respeitar as leis que regulam as relações de trabalho. Na linguagem da lei, a função social é isso. E todos esses
requisitos devem ser cumpridos simultaneamente, isto é, um não pode existir sem
os outros. A utilização não pode ser somente com o fim econômica e não ter sentido social
e sem respeitar o meio ambiente.
Exemplificativamente, devastar florestas nativas e plantar soja, sem a
reposição das árvores retiradas a fórceps, não é cumprir a função social.
Pode-se dizer: é privilegiar o “econômico” em detrimento do “social” e do “ambiental”, porque destrói a natureza, ou seja, a fauna, a flora e
os recursos hídricos, comprometendo a vida humana para a atual e futuras
gerações. Costumo comparar a função social a uma mesa sustentada sobre quatro
pernas; se faltar uma delas, a mesa fica manca, hipótese em que um copo cheio
de água sobre ela, facilmente transbordará, por falta de equilíbrio.
Nesse
toar, colocando-me como defensor do cumprimento da função social de qualquer
imóvel, rural ou urbano, penso que o “vil metal que ofusca a própria luz do sol”, no dizer risonho do meu colega
dos anos 70 do século passado, pode conviver com a função social, mediante a
cessão do uso da posse a quem queira e tenha condições de explorar o imóvel,
estabelecendo-se como contrapartida um aluguel ou a partilha dos frutos. Não
sem razão, o legislador brasileiro preservou as regras que disciplinam os
contratos de arrendamento e de parceria. São formas de manter a
propriedade e dar-lhe sentido social e econômico, sem perder a titularidade da
propriedade, mesmo que esse modelo de negociação não afaste o sentido patrimonialista. A solução, portanto, é
intermediária; “nem tanto ao mar, nem tanto à terra” – na filosofia popular.
A partir dessas premissas, mantém-se o patrimonialismo historicamente
sedimentado em nosso país, embora já marcado por limitações direcionadas para
um sentido social e econômico ao imóvel. O que não se concebe é a ociosidade
da terra e a ostentação de títulos de propriedade, alimentando utopias e sonhos de riqueza inútil. A realidade eloquente de demandas
reprimidas por um pedaço de chão para o plantio de alimentos necessários ao
combate da fome que ronda casebres e palhoças vazias no interior do Brasil
constitui o antídoto de utopias e sonhos vazios ou sublimes. A ociosidade da
terra, ainda que titulada de acordo com o sistema legal, não se harmoniza com o
sentimento da solidariedade, ínsita
do ser humano, que se contrapõe à cobiça – também própria do ser
humano, embora carregue, em seu ventre, o apetite insaciável do “ter”. É esse afã de ter e possuir o “vil metal” que vitaliza o patrimonialismo, peculiar ao capitalismo. E não se
pode abstrair outra realidade de que o Brasil vive, sem freios e barreiras, o
regime marcadamente capitalista, ainda que certos segmentos tenham medo do
“socialismo”, como se esta terminologia signifique “comunismo”. Essa é uma
pregação sistemática que se vem fazendo, atualmente, com uma contundência
risível - para não dizer ridícula -, depois da derrubada do “muro de Berlim”.
Estamos no século 21 (XXI) e, desgraçadamente, ainda há quem pense no “perigo
do comunismo” !!! Ao meu pensar, esse discurso soa como esquizofrenia, pesadelo e incapacidade, contrapondo-se à ideia de utopias, sonhos e realidades
palpáveis. Induvidosamente, não é o caso do Brasil.
Bem
reconheço que não é um exercício fácil compreender a socialização da terra, no
sentido de dar-lhe função social, que não significa, necessariamente, perdê-la.
A transmissão temporária da posse não implica a extinção do direito de
propriedade. Daí a proposta: buscar o equilíbrio
entre uma coisa e outra.
Nessa linha de pensamento, volto a falar no
meu desalento revelado em outro texto publicado nesta coluna, a respeito da
venda de terras para a expansão de cultivo de soja em minha terra natal
(Buriti-MA), quando poderiam ter sido celebrados contratos de arrendamento ou
mesmo de parceria. Os arrendadores não
perderiam seus direitos de propriedade e receberiam, em contrapartida da cessão
do uso dos seus imóveis, aluguéis ou participação na produção (partilha), além
do que poderiam inserir cláusulas com a obrigação dos arrendatários de, ao
final do contrato, devolverem o imóvel com todas as benfeitorias e acessões,
além da obrigação de manterem um nível razoável de preservação ambiental. A
alienação não permite essas estipulações.
Foram-se os dedos e os anéis!
Após
essas considerações, volto à consulta do meu amigo íntimo. Todos temos o
direito de usufruímos o produto de nosso trabalho e dos bens que adquirimos na
passagem da vida. Mas lhe apontei a sabedoria dos romanos, na clássica
expressão latina: Virtus in medium est (a virtude está no meio). Quero dizer, a
solução dos dilemas está no meio, e foi por isso que o aconselhei que
considerasse a conveniência da alternativa de contratos de arrendamento ou de parceria
do seu imóvel, e não a venda, em razão do quadro econômico brasileiro nesses
últimos anos, que é uma realidade circunstancial. Caso vendesse, o valor do preço recebido
poderia “escorregar entre os dedos” e, ao fim e ao cabo, nem chácara nem
dinheiro!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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