Singularidades na condenação e prisão de Lula.
DÚVIDAS QUE DIVIDEM OPINIÕES
*Por Benedito Ferreira Marques
“Todos são iguais perante a lei...”
Esse
é o preceito que inicia o quinto artigo da Constituição da República Federativa
do Brasil. Ao primeiro olhar, enxerga-se o princípio da IGUALDADE e chega-se mesmo a considerá-lo uma regra absoluta.
Talvez por isso, todos nós proclamamos
com a boca cheia: ”Ninguém está acima da
lei”. O leitor não se dá conta de que a complementação “perante
a lei” relativiza a regra constitucional. Quando um idoso reclama seu
lugar no estacionamento de um shopping
center ou de outros estabelecimentos com estacionamentos próprios para
veículos, o faz de acordo com o “Estatuto do Idoso”, incorporado numa lei. Só com esse exemplo, já se vê que a
igualdade não é absoluta, porque, no caso, a idade de uma pessoa pode estabelecer
uma diferenciação de tratamentos entre os frequentadores do estabelecimento
comercial, no que concerne às áreas reservadas para idosos (ou deficientes
físicos). Pode-se reclamar? Não. O idoso está no seu direito previsto “em uma
lei”, que, à sua vez, tem abrigo seguro na Constituição da República Federativa
do Brasil, na qual também está consagrado o princípio da dignidade da pessoa humana. A igualdade legal não se confunde com a
igualdade real. Aristóteles (.384 a.C – 322 a.C), o grande filósofo grego, já
dizia que o justo é “tratar igualmente os iguais e desigualmente
os desiguais”.
Pois
bem. Dois fatos recentes servem de mote a minha narrativa desta semana. O
primeiro foi a decisão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que, por 10
votos a 1, tornou sem efeito a decisão de uma juíza de Curitiba, responsável
pela Vara de Execuções Penais, transferindo o ex-Presidente Lula para São
Paulo, cujo Tribunal de Justiça, no mesmo dia, escolhera o Presídio de Tremendé, no interior daquele Estado para hospedar o
ilustre apenado. Foi um reboliço que causou grande repercussão, agradando e
desagradando a muitos, certamente milhões, ou seja, “farra” para uns e piedade
para outros. Um fato espetaculoso e de grande impacto, para além da mídia.
O outro fato foi a aprovação, pelo
Congresso Nacional (Senado e Câmara Federal), de um Projeto de Lei que
criminaliza abusos de autoridades. Agora,
quem vocifera são os dirigentes de entidades corporativas de autoridades
atingidas, principalmente magistrados e membros do Ministério Público e
policiais. O discurso utilizado é o de que essa novidade legislada irá
“atrapalhar” as investigações, talvez até seja o “fim” da famosa “Operação Lava
Jato”. Um exagero, evidentemente!
Diante
desses dois fatos, um amigo leigo em matéria jurídica e que gosta de me
instigar, principalmente em matérias que envolvem considerações sobre leis
emergentes impactantes, me formulou as seguintes indagações: 1ª.) – se a
sentença que condenou Lula foi confirmada por mais 8 juízes (3 do TRF-4 e 5, do
STJ), porque ainda há quem defenda que a condenação foi imparcial? 2ª.) a juíza
de Curitiba pode ser enquadrada em crime
de abuso de autoridade, por ter proferido a sua decisão somente agora, considerando-se
que o pedido da Polícia Federal fora feito em maio de 2018? 3ª.) – o
ex-Presidente Lula merece prisão em cela especial, como decidiu o STF?
Eu
mesmo criei, para mim, no enfrentamento de indagações desse jaez, uma
classificação para essas perguntas. São elas: racionais (lúcidas), embaraçosas
e ingênuas. Entendo que as três indagações do meu amigo podem
ser classificadas nas duas primeiras categorias.
Com efeito, são racionais, porque, aos leigos, o que importa é a quantidade de
julgadores do mesmo caso e com base no mesmo processo. Para eles, se oito
juízes de graus mais elevados na hierarquia da magistratura confirmaram a
decisão do primeiro julgador, há que se presumir que a condenação foi correta e
justa, bem como a prisão do ex-Presidente. Há uma certa racionalidade nessas ponderações, considerada a lógica do número de
julgadores. Mas não se pode abstrair que houve modificações na dosimetria da
pena, nos três graus de jurisdição. Essas modificações explicam a relativização da igualdade sustentada na
parte preambular desta narrativa.
As
demais perguntas classifico como embaraçosas,
porque me obrigam a emitir opinião pessoal que pode não coincidir com a posição
política do meu interlocutor. Levando-se em linha de consideração a atual
conjuntura política nacional, em que se observa uma nítida divisão do povo,
sopesadas as paixões disseminadas, as posições antagônicas tendem a gerar um
clima de “torcida de futebol”. Nem por
isso, deixarei de emitir o meu juízo a respeito das segunda e terceira perguntas,
ainda que tenha que misturar minhas convicções ideológicas com a lógica
jurídica e de recursos metafóricos.
Como
já dito, a igualdade – tal como está
na Constituição da República -, não é absoluta,
porque depende da lei que regula o direito a que ela se destina, cuja
interpretação reclama juízos subjetivos. Na hipótese da confirmação da sentença
condenatória por mais 8 julgadores, a meu pensar, não significa que os seus
juízos foram corretos. O direito não é uma ciência exata. Fatores outros podem
ter interferido nas decisões superiores. Em situações que tais, sinto-me
compelido a buscar raciocínios metafóricos para ponderações plausíveis. No caso
concreto, busco socorro em Ariano
Suassuna (1927 - 2014), que gostava de proferir palestras ricas em
sabedoria. Certa feita, numa dessas palestras, confessou que tinha uma certa
admiração pelos loucos. Entre outras “estórias”, contou que uma pessoa considerada
maluca encostou um dos ouvidos a um muro. Alguém que passava lhe indagou o que
ele estava ouvindo. O doido apenas acenou com uma das mãos, como se pedisse
silêncio. Encabulado, o transeunte resolveu também encostar seu ouvido no muro.
Depois mais outros e a fila já estava enorme. Passadas algumas horas, o louco
resolveu afastar-se do muro. E todos lhe perguntaram: afinal, o que você ouviu?
E ele respondeu: “Nada, desde manhã “tá”
assim calado, não diz nada!
Indaga-se:
aqueles curiosos que também puseram suas
orelhas coladas ao muro eram doidos? A resposta serve para a primeira
indagação do meu interlocutor. Para quem sabe ler um pingo é letra – já o
disse, certa vez, nesta coluna.
A
pergunta relacionada com a incidência da “Lei de Abuso de Autoridades” na
conduta da juíza da Vara de Execuções Penais de Curitiba comporta
contemperamentos. Embora ainda não se possa considerar lei, porque não foi
sancionado pelo Presidente da República, o texto aprovado pela Câmara dos
Deputados, sem qualquer emenda ao que viera do Senado, muitos questionamentos
estão sendo feitos, inclusive em ações na Suprema Corte, com pretensão
anulatória do formato adotado na votação do texto. Até o momento em que escrevo
este comentário, só fala que haverá veto, total ou parcial. Se for mantida a
redação, vislumbro abuso de autoridade
na decisão da magistrada de Curitiba. Primeiro, porque me parece tardia, com
cheiro de casuísmo, uma vez que o pedido da Policia Federal havia sido feito em
maio de 2018. Por que somente agora foi proferida a decisão, deferindo o pedido
há mais de um ano? Em segundo lugar, porque tal decisão passou um forte indício
de uma operação oportunista para quem acompanha com interesse o desfecho da
prisão de Lula. O oportunismo encontra explicação na lógica, porque coincide
com o vazamento de diálogos comprometedores entre o primeiro julgador que
condenou o ex-Presidente e o “Chefe da Força Tarefa” da Lava Jato. Consta que a
The Intersept Brasil ainda tem muito
a divulgar. A reação dos envolvidos é intuitiva. Não me parece desarrazoada a
denominação de “Operação Tremendé”. Tudo ocorreu em menos de 24 horas,
inclusive a decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal, que se sensibilizou
com a mobilização de parlamentares envolvendo mais de uma dezena de partidos
políticos, no gabinete do Presidente da Corte.
Não houvesse essa reação imediata, talvez o preso estivesse em Tremendé
(SP) e, como chegou a ser comentado, com a “cabeça raspada”, no desejo de
muitos. Confesso que não sei como definir desejos tão cruéis, para quem
concorreu cinco vezes às eleições presidenciais e governou por dois mandatos
seguidos e ainda elegeu a primeira mulher para o mais alto cargo na República.
A igualdade formal, no caso, é também
colocada em cheque, na medida em que os crimes atribuídos ao personagem ainda
estão sendo questionados em recursos pendentes.
Penso,
portanto, que se o Projeto de lei já estivesse se transformado em lei, a magistrada
poderia escapar de incidência criminal pela demora da decisão, já que o pedido
de transferência do preso para outro presídio – inclusive fora do Estado do
Paraná -, havia sido formulado pela Polícia Federal em maio de 2018. No
entanto, as circunstâncias em que o deferimento do pedido foi tomado poderiam
conduzir o episódio como ato tipificável no art. 23 do Projeto de lege ferenda, porque implicaria em inovação
artificial do estado do lugar, com o fim de eximir-se de
responsabilidade. Além dessa tipificação, poderia também ser enquadrada na
hipótese prevista no artigo 14, ao permitir filmagens do preso. A
espetacularização seria inevitável, causando-lhe constrangimento irreparável do
ponto de vista moral. Tratando-se de um ex-Presidente da República e incontestavelmente
o maior líder popular do Brasil, na atualidade, misturar-se-iam euforias reprimidas
dos que o queriam ver em situação de humilhação, e, certamente, compaixão dos
que consideram a sua condenação injusta e descabida.
Quanto
ao “direito à cela especial” (nível Estado Maior), a matéria é discutível, até
mesmo em nível de legislação aplicável. Mas não se pode afastar a lógica da
“segurança pessoal” de um ex-Chefe de Estado que, certamente, deve guardar os
chamados “segredos de Estado”, A proteção olhada sob esse prisma, leva-me a
concluir que ele merece uma cela que lhe garanta a segurança pessoal, ainda
mais quando há recursos pertinentes – a meu juízo -, que ainda não foram
apreciados. Continuo sustentando o entendimento já esposado em outro texto
nesta coluna, de que o “princípio da presunção de inocência” deve ser
assegurado pelo Supremo Tribunal Federal, que deverá rever a jurisprudência de
prisão em segunda instância, para ele e para todos, quaisquer que tenham sido
os delitos denunciados.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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