Semelhanças e dissemelhanças.
FUTEBOL,
O “VAR” E A “LEI DO ABUSO DE AUTORIDADE”
Por Benedito Ferreira Marques
O campeonato de futebol chamado
“brasileirão” do ano passado (2019), adotou uma novidade que deu muito o que
falar: o VAR, uma telinha instalada à margem do campo, operada por um “corpo de
árbitros” de futebol, supostamente neutros, que, por áudios, provocavam o
árbitro principal da partida, em lances duvidosos. Tanto serviu para anular,
como para confirmar gols assinalados pelo árbitro da disputa. Não raro, serviu
para justificar pênaltis marcados ou não marcados, interferindo diretamente no
resultado do jogo. Quero dizer, o VAR veio para agradar e desagradar os
torcedores, a depender das circunstâncias da aplicação da novidade tecnológica.
Narradores e comentaristas dividiram-se em opiniões favoráveis e contrárias à
utilização desse moderno instrumento de arbitragem auxiliar que,
necessariamente, provoca atrasos no tempo normal do jogo. Comentaristas de
arbitragem opinavam, quando chamados, mas sempre diziam que a decisão final é sempre do árbitro em campo. Se a regra é essa, não vejo corporativismo
nisso.
O VAR, portanto, pode ser comparado, grosso
modo, como “juiz das garantias”, tema do qual me ocupei em texto anterior,
nesta coluna. A diferença entre essas novidades comparadas está em que a
intervenção do VAR se dá após o “lance duvidoso”, enquanto no caso do “juiz
das garantias”, este atua na fase investigatória, ou seja, antes da denúncia,
peça que, se aceita, seja desencadeada a instauração do processo penal. Como se
vê, nas duas hipóteses há juízos diferentes para o mesmo caso ou fato. Daí, as
semelhanças e dissemelhanças.
No dia 5 do corrente mês (5.1.2020), entrou
em vigor a Lei n°13.869, de 5 de
setembro de 2019, já apelidada de “Lei do Abuso de Autoridade”. Há quem diga que essa lei foi editada
pelo Congresso Nacional para refrear impulsos de magistrados afoitos que miram
a classe política provavelmente comprometida com atos de corrupção. Bem ou mal,
ao que se lê no primeiro artigo dessa nova lei, o seu alcance é largo, pois
dela não escapa nenhum agente público, servidor ou não, vinculados
aos três Poderes da República e nos três níveis federativos, ou seja, a ela se
submetem o mais humilde agente público
municipal, estadual ou federal, bem como vereadores, deputados (estaduais e
federais), senadores, governadores ou Presidente da República, e, ainda, juízes
de todos os graus de jurisdição, promotores, procuradores em nível estadual ou
federal, enfim, todo aquele que recebe remuneração advinda dos cofres públicos,
ou seja, dos impostos que pagamos. Não sem razão, além do Ministério Público,
qualquer cidadão tem legitimidade para provocar a instauração de ação penal, através
de queixa, contra qualquer autoridade que abuse do poder.
Não
me proponho a analisar, por inteiro,
o texto dessa lei, senão apenas traçar parâmetros entre as novidades
legislativas advindas (“juiz das garantias” e “crimes de abuso de autoridade”)
com a utilização no VAR, nas arbitragens de jogos de futebol. Afinal, as três
situações exigem uma certa compreensão sobre aspectos jurídicos, que é a minha área
de conhecimento. Penso que, ao comentar essas leis, não estou praticando crime
de “abuso” de narrativas com conteúdo jurídico.
Com efeito, na abordagem relacionada com a
figura do “juiz das garantias” - que
veio com o propósito de afastar riscos de “parcialidade” - e, portanto, assegurar
a “imparcialidade” nos julgamentos -, cheguei à conclusão de que o
problema da efetividade da prestação
jurisdicional, com justiça e razoável celeridade, não está na quantidade
de juízes, mas, sim, na vulnerabilidade comportamental a que
todo ser humano está submetido, no momento de tomar decisões. Não importa que o
ato decisório seja tomado na fase investigatória ou na fase de julgamento do
caso concreto.
No mesmo comentário a que me reporto, fiz ligeira
consideração sobre a morosidade sistêmica da máquina
judiciária brasileira, também considerado um problema para os jurisdicionados. Ponderei que a Constituição
Federal – cívica e carinhosamente apelidada de “cidadã” pelo saudoso político Ulisses Guimarães -, preconiza que “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação” (EC 45/2004). A utilização do VAR em partidas de futebol
não apenas introduz “árbitros de garantias”, como também compromete a duração
do tempo regulamentar do jogo, como demonstrado. Vale dizer, o VAR contribui
com a “morosidade” do jogo, atingindo diretamente a paciência dos torcedores,
dentro ou fora do campo. Assim também poderá ocorrer com os processos criminais
com a instituição dos “juízes das garantias”, além do que não se pode assegurar
a imparcialidade almejada pela
sociedade. É o que penso.
Com
relação à “Lei do Abuso de Autoridade”, a que me reportei linhas atrás, retiro apenas
uma regra que, se bem refletida, guarda similitude com o uso do VAR. Refiro-me
ao artigo 37, que classifica como crime a retenção demorada de processos, em
órgãos colegiados, prevendo, inclusive pena. É evidente que, no rol de órgãos
colegiados, estão os Tribunais, não necessariamente apenas os Superiores A
criminalização da retenção de processos sob vistas está claramente prevista no
mencionado artigo 37, com o seguinte teor: “...demorar demasiada e
injustificadamente no exame do processo de que tenha requerido vista em órgão
colegiado, com o intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento
– Pena: detenção de 6 meses a 2 anos e multa”.
Não se ignora que processos de grande
relevância no cenário político nacional estão sob vistas, há meses, de
eminentes Ministros da Suprema Corte de Justiça. No dizer popular, “estão
sentados em cima dos processos”. É
natural que esse comportamento seja adotado por outros órgãos colegiados.
Ora,
a regra transcrita tem conteúdo marcadamente subjetivo. Na prática, a
própria regra dificulta iniciativas de instauração de ações penais, a partir
das alocuções “demorar demasiada e injustificadamente no exame do processo...”...com o
intuito de procrastinar seu andamento ou retardar o julgamento...” Vale dizer: quem se sentir prejudicado pela demora,
terá que provar que é “demasiada” e “injustificável”, bem como o “intuito de procrastinar
seu andamento ou retardar o julgamento”.
O que se pergunta é quem vai ter a coragem
de questionar a “demora em demasia” e o “intuito de procrastinar o andamento ou
o retardamento do julgamento do processo”.
No caso do STF, por exemplo, não tenho conhecimento de que a Procuradoria
da República ou advogados de réus envolvidos em processos que tais tenham
apresentado denúncia ou queixa-crime contra qualquer Ministro, ainda que sejam
públicas e notórias tais ocorrências. Sabe-se, através da mídia, que processos que
envolvem políticos de grande expressão dormitam nos gabinetes, à espera de
oportunidade para serem pautados.
Enquanto isso, a sociedade indaga: cadê o VAR para esses casos? Não há. E o jogo fica suspenso por tempo
indeterminado, angustiando a torcida composta pela mesma sociedade!
Ao
fim e ao cabo, trata-se de uma regra inócua, na medida em que inviabiliza, na
prática, a abertura de ações penais, em razão dos condicionamentos subjetivos
inalcançáveis. Nessa linha de
compreensão, a pena prevista no artigo 37 da “Lei dos Crimes de Abuso de
Autoridade” perde-se no vazio do despropósito. Lastimavelmente!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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