Ca´hehxy, a indígena mais idosa do povo Krikati
viveu 104 anos. A bem da verdade ela viveu 103 anos, 11 meses e 18 dias, pois
no dia 21 de janeiro deste ano ela nos deixou, voltando para a Origem de sua
existência, encontrando seus ancestrais e ao marido Tataíra, a lendária figura dos
Krikati, falecido aos 103 anos
completos.
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Ca´hehxy |
A tradução para o nome Ca´hehxy na língua jê
Krikati é “bagaço amargo”. Entretanto,
de amargo ela nada tinha. Era elegante, com olhar penetrante. E como todo Krikati possui um nome em
português, o seu era Eva. A mãe de todos
nós.
Eva, essa
centenária amiga morava atrás da casa da mãe Maria José, sua filha, minha mãe “adotiva”
na aldeia São José. O clã dela me hospeda nesta aldeia.
Agora em 2022 faz 10 anos que conheço Eva. Ela nasceu
em 1918, no final da primeira guerra mundial. Quando Curt Nimuendajú, o maior
etnólogo brasileiro/alemão veio estudar os Krikati, em 1919, Eva estava com 1
ano de vida. Era um tempo difícil para estes indígenas. Quando Nimuendajú
voltou, em 1930, Eva Ca´hehxy estava com 11 anos. Ela estão conheceu Curt Nimuendajú.
Os escritos de Nimuendajú em inglês levaram os timbiras, como os da etnia
Krikati, ser conhecidos no mundo. E certamente, o impacto positivo causado
pelos estudos desse etnólogo repercutiu para Eva chegar aos 104 anos.
Nesta
manhã, enquanto pensava em Eva, conclui pela primeira vez que ela conheceu o Nimuendajú.
Porém, em vida eu não perguntei pra ela. Aliás, mesmo tendo muitas
oportunidades de estar com Eva na aldeia, pouco com ela conversava. O português
falado por ela era muito pouco e eu
agora que estou entendendo o Krikati. E nas poucas vezes que Eva falava comigo
era afirmando que queria “bulanha”. Assim, tinha de trazer “bulanha” pra ela quando
chegasse. Era uma maravilha de graça e encanto,
Eva, em seu português puxado me pedir “bulanha”.
Agora essa é a memória mais cativante que
permanece dentro de mim dela.
Ca´hehxy, embora tenha falecido em janeiro de
2022, soube apenas um mês atrás. E estando hoje dia 30 de julho entre os
Krikati, tive a felicidade de celebrar a vida e a morte de dela correndo com a
tora de barriguda de 200 quilos, em um percurso de 9 km. Eu não sei carregar no
ombro a tora, mas corri no sol quente todo o percurso até o pátio da aldeia.
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Corrida de TORA da BARRIGUDA de C'ahehxy |
A Corrida da tora de Barriguda é um rito
fúnebre essencial na cultura Krikati. Entre eles quando morre um dos seus, até
acontecer a festa/corrida da barriguda, os estes queridos (a família, os amigos
próximos) entram de luto por meses. Assim, é
tempo em que barba e cabelos de homens e mulheres crescem. Os cantores
da aldeia cantam no pátio com quem desejar, durante todo período, em dias
alternados, em memória do falecido.
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Chegada de tora no pátio da Aldeia |
O clã de
Eva estando há 6 meses está de luto. Amanhã ele é concluído com a corrida da barriguda dos homens. Nesta
corrida existe tradição, esforços, suor e lágrimas. Se vivi todos esses
sentimentos envolvidos na maratona.
No dia de hoje acordei às 4 da madrugada, indo para o pátio ouvir os cantores. A fogueira da Dança do Fogo (outro rito
fúnebre) acesso no começo da noite, ainda aquecia a todos. Quando
tudo pronto, a claridade dominando tudo, se iniciou a corrida de tora das mulheres. Ao chegar os dois partidos femininos no pátio da aldeia circular, chorei a vida e
morte de Eva, cabisbaixo, segurando uma das toras, dizendo pra ela: - “Sentimos sua
falta”.
Espírito agora encantado, Eva não me ouviu. As
lembranças de sua vida e da festa do encerramento da sua morte/luto, serão
guardadas em nossas memórias através das centenas de fotos dos corpos pintados; na farta comida
distribuída para os participantes; os dois presentes trocados entre os compadres dela e nas duas toras do partido de baixo e de cima
preservadas na Biblioteca da aldeia e em
dois museus, tendo uma foto de Eva Ca´hehxy,
indígena que viveu em 104 anos.
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Francisco Carlos Machado |
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