*Por Benedito Ferreira Marques
A DEMARCAÇÃO DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS E O MARCO TEMPORAL...
Observa-se que o assunto do momento é o chamado “Marco
Temporal” para a demarcação dos territórios indígenas, preconizada na
Constituição Federal. Ali está posto que “são reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os bens”. Não há referência a prazo
para o início e fim para o início do processo demarcatório, nem a partir de
quando deve ser considerada a ocupação. Há, contudo, uma ciência chamada
hermenêutica, à sombra da qual o intérprete dá o sentido que lhe parece. Assim
deve ter sido a criativa invenção de um marco temporal, a despeito da alocução
“tradicionalmente ocupam”. De logo,
marco minha posição contrária a essa interpretação que tem cheiro de
pragmatismo. Por outro lado, penso que o legislador constituinte poderia ter
dividido o preceito em duas partes, reservando a demarcação para outro artigo,
ou, no mínimo para um parágrafo único, inserindo um verbo mais imperativo do
que o “competindo-lhe” e explicitando o marco temporal para 1.500!
Havia uma grande expectativa sobre a retomada do
julgamento da matéria no Supremo Tribunal Federal, na sessão do dia 7 de junho
(2023), quando o Ministro Alexandre de
Moraes apresentaria seu voto, depois de pedir vistas do processo, apenas
com o voto do Ministro –Relator, Edson
Fachin, posicionando-se contra a ideia do “marco temporal”, no dia
05.10.1988, quando foi promulgada a Carta Magna. Bem por causa dessa
expectativa, houve manifestações em várias partes do País, desencadeadas pelos
povos indígenas, culminando com a presença maciça de representantes de diversas
etnias, tendo à frente a Ministra Sônia
Guajajara. Seguramente, uma atitude
marcante e coerente!
Também interessado pelo assunto, assisti à aguardada
sessão com a maior atenção, sobretudo para anotar as teses que certamente
comporiam o voto do Ministro Alexandre de
Moraes, conhecido por suas posições criativas para a solução de conflitos, na
busca de caminhos intermediários. Afinal, há um brocardo, segundo o qual “a
virtude está no meio” (em Latim: “virtus in
medium est”.
Pelas primeiras colocações, atinei que o magistrado
escolheu duas linhas: (1) a busca da PAZ, e (2) a segurança jurídica. Vale
dizer, a pretensão dos povos indígenas deve ser atendida com a demarcação dos
seus territórios, sem observância de qualquer marco temporal. Mas, em
contrapartida, os detentores de títulos de propriedade com posse de boa-fé
comprovados, devem ser indenizados em sua inteireza, ou seja, o valor da terra
nua e o das benfeitorias. Ao sugerir essa modulação, sinalizou que o pagamento
da indenização se daria através de TDAs (Títulos de Dívida Agrária),
ressalvando: “caso queiram”.
Tenho que o assunto é, realmente, polêmico em suas
variadas dimensões, além do que é marcadamente de interesse público, na medida
em que envolve segmentos da sociedade que se inserem no contexto econômico,
político e cultural. Deveras, colocam-se na linha de tiro cerca de 114
processos de demarcação em 185 municípios e os chamados “povos isolados” que
seriam fortemente alijados. Na outra ponta do “cabo de guerra”, os
paladinos do agronegócio sustentam a sua hegemonia econômica.
Para os jusagrarista – em cuja categoria me incluo -,
a polêmica reside, basicamente, na concepção dos institutos da propriedade e da posse. Para muitos não agraristas esses institutos se contrapõem.
Não é bem assim; ao contrário, eles se completam e se harmonizam na simetria da
produção.
Com efeito, a propriedade é um direito constitucionalmente assegurado, mas sob a condição de
cumprir a função social e, conforme tenho sustentado nesta coluna em outros
escritos, somente a posse
potencializa o cumprimento da referida função, justamente porque ela se
exterioriza no exercício de atividades agrárias, quando se trata de imóveis
rurais.
No caso concreto da discussão instaurada, a demarcação
de territórios indígenas poderá afetar direitos
de propriedade privada – com títulos legítimos e autênticos, ou não -, e os
povos originários com ocupações imemoriais. Diz-se ocupação – ao invés de posse
-, porque seus direitos são de usufrutuários
de terras públicas, de acordo com os mandamentos constitucionais.
Destarte, o voto do Ministro Alexandre de Moraes abre
espaço para uma solução intermédia entre proprietários
titulados e comunidades indígenas, em
nome da “paz no campo”. Todavia, inaugura outra polêmica, que é o formato
indenizatório. Primeiro, porque condiciona tal direito a uma posse de boa-fé, cuja apuração envolve
um fortíssimo componente de subjetividade no processo de avaliação. Isso,
porque somente a exibição de escrituras registradas em cartório não significam,
por si sós, a presunção de boa-fé. Em
segundo lugar, o pagamento em TDAs não tem previsão constitucional, senão nas desapropriações
para fins de reforma agrária. A demarcação de terras dos povos indígenas não se
confunde com a reforma agrária, até porque as terras demarcadas volvem à
categoria de bens públicos, sem desapropriação. Em terceiro lugar, a sugestão
do respeitado Ministro cria um ônus ao Poder Público sem contrapartida
evidente, senão a de respeitar o mandamento constitucional, providencialmente
ressalvado pelo Congresso Constituinte de 1988, certamente escorado em disposições
constitucionais pretéritas, a partir de 1824. Demais disso, a Suprema Corte não
pode incorporar mecanismos normativos na Lei Maior; ao revés, seu mister é
interpretar o que está posto, ainda que os propósitos sejam salutares e bem
concebidos, na linha da busca da paz. Vejo, todavia, que a ideia não é
esdrúxula, mesmo com ausência de previsão legislativa, até porque a indenização
idealizada não é, tecnicamente, de benfeitorias,
mas, sim, de acessões artificiais
(construções e plantações), já que inclui a “terra nua” no cômputo
indenizatório. Há uma distinção conceitual entre benfeitoria (acessório do principal) e acessão artificial (principal, em sua natureza). A regra é esta: “Aquele que semeia, planta ou
edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes,
plantas e construções; se procedeu de boa-fé, tem direito a indenização”.
Nessa perspectiva, se vislumbro na proposta do Ministro um certo pragmatismo, por outro lado, percebo que a ideia de alteração da Constituição Federal, como vem sendo articulada e propalada por certos parlamentares - no sentido de fixar um marco legal para as demarcações de territórios indígenas -, um desalentador casuísmo. Primeiro, porque não enxergo matiz constitucional nesse cogitado “marco legal”; segundo, porque considero o direito à demarcação desses territórios uma cláusula pétrea. Inovações casuísticas, na minha compreensão, não encontram agasalho no espírito republicano que deve nortear a nação brasileira. E mais que isso, ofende um dos mais caros fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana, Os povos indígenas são humanos, quanto os passageiros em trânsito que compõem o Parlamento brasileiro.
SOBRE O AUTOR

- Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1967); cursos de Especializações (Direito Civil – Direito Agrário e Direito Comercial) e Mestrado em Direito Agrário, todos pela Universidade Federal de Goiás; Doutorado em Direito, pela Universidade Federal de Pernambuco; Professor de Direito Civil, na PUC-Goiás (1976-1984) e de Direito Civil e Direito Agrário (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás /UFG (1980-2009). Advogado do Banco do Brasil (1968-1990). Diretor da Faculdade de Direito da UFG (2003-2005) e Vice-Reitor da UFG (2006-2010). Autor de livros jurídicos e não jurídicos (15) e de artigos científicos em revistas especializadas. Conferencista e palestrante em congressos, seminários e simpósios. Tem outorgas de títulos de “Cidadão Pedreirense” (1974), “Cidadão Goiano” (2007) e “Cidadão Goianiense” (1996), além de dezenas de medalhas de honra ao mérito. Pertence ao Quadro de Acadêmico-Fundador da Academia Buritiense de Artes, Letras e Ciências – ABALC, onde ocupa a Cadeira nº6, que tem como Patrono Plínio Ferreira Marques. Colabora com artigos e crônicas para o “Correio Buritiense”.
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