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A VIAGEM DE PAU DE ARARA QUE ME TORNOU FRANCISCANO EM CANINDÉ. Por Francisco Carlos Machado

                                                         Em memória de Maria Justina Costa Bastos ( Dona Moça) 

             Na infância, ouvia amigos e conhecidos falarem das romarias anuais para as cidades de Juazeiro do Norte e Canindé, no Estado do Ceará, com objetivos de pagamentos de promessas ao Padre Cícero ou a São Francisco. 

              Na época, essas viagens feitas em caminhão Pau de Arara, com suas diversas histórias, criou um desejo de um dia fazer o trajeto. Nos anos de 1980 e 1990, dezenas de católicos romeiros da minha cidade natal e cidades circunvizinhas e outras desconhecidas, de romeiros passando cantando em caminhões em Pau de Arara, na Avenida principal da minha cidade, me chamavam muito atenção. 

             Os meus pais, católicos nominais, nunca me obrigaram a viver o catolicismo, nem tão pouco falavam de fé cristã para mim. Logo, se tinha algum santo de devoção, não era São Francisco, pois nunca soube terem ido ao Canindé para algum ato de pagadores de promessas. Diante, a possibilidade de me levarem a uma romaria, seriam nulas.

             Os anos passaram. Eu me tornei crente pentecostal aos dez anos, porém, o espírito de aventuras e buscas insaciável de conhecimento, aflorado na infância; em minha   adolescência, se tornou flor selvagem, com raiz muito profunda, de um vigor ansioso por saberes e conhecimentos  sobre coisas e  lugares, no querer, literalmente,  viver experiências de  viajar  e está nos lugares mais desconhecidos e novos do mundo.

              Nisto comecei minhas aventuras, simples e radicais, tipo:  ir até Brasília de carona; caminhar em três dias até Teresina; além de já ter explorado todos os morros e lagos ao derredor da cidade e outras aventuras loucas.

              É neste contexto, em março de 2003, meu pai me informou que sua vizinha, popularmente conhecida como Dona Moça, tinha conseguido um caminhão Pau de Arara e estava organizando uma viagem ao Ceará para pagamento de uma promessa pessoal, sendo que quem desejasse ir, não pagaria a passagem.

              - Eu quero ir, lhe disse. Sempre desejei ir ao Canindé e viajar em um Pau de Arara.

              - Dona Moça, papai me falou da viagem de romaria que a senhora está organizando, eu posso ir com vocês?

               -  Mas tu não é crente?! Para quer que ir ao Canindé? 

               - Sim, sou, mas eu sempre desejei viajar em um caminhão Pau de Arara e conhecer, desde criança sobre essa romaria. 

                - Tá bom! Vamos viajar dia tal...

                - Agradeci a  Dona Moça, com um sorriso de felicidade. Iria realizar um sonho de criança.

                 No Nordeste um transporte Pau-de-Arara, é normalmente caminhões e camionetes de diferentes tamanhos, no qual consiste em uma adaptação, onde na carroceria do veículo são colocadas tábuas, que servem de assento, e a instalação de uma lona como cobertura para proteger das intempéries do sol e da chuva. Constitui uma viagem bem simples, sem conforto alguma. O prazer, para mim, era mesmo, em viajar sentindo os ventos; de ver livremente  as  paisagens que, no trajeto, encontraríamos; sem vidraças, impedindo a plena visão das coisas.

                  Assim, cinco dias depois, meu mochilão estava cheio do necessário, levei uma barraca, pois fui informado que dormiríamos em lugares abertos, levando pouco dinheiro, devido ter chegado, alguns dias antes de outra viajem.

                   No dia da partida, por volta das nove da manhã, os convidados de dona Moça estavam defronte ao prédio que foi o primeiro mercado público da nossa cidade. Era um grupo de umas vinte e tantas pessoas, entre velhas e velhos; umas quadro crianças e uns cincos jovens adultos, sendo motorista o senhor Luzimar (em memória). Por ser amigo de crianças (nesta época desenvolvia alguns trabalhos sociais com elas na cidade), me juntei logo aos netos de dona Moça (Branco e Mariana – em memória) e as demais, como Vinicius Alencar, onde fiquemos no fundo do Pau de Arara.

                     Partindo do Garapa, atravessamos de barca o nosso rio Parnaíba para o estado do Piauí, via as cidades de Miguel Alves, União, José de Freitas, Piripiri, região norte piauiense, rumando para a grande Serra de Ibiapaba, região de fronteira dos dois estados, no qual alcancemos na manhã do segundo dia. A subida dessa serra era, sem dúvida, a primeira grande atração até então. Era linda vê - lá dentro do Pau de Arara. 

                      Em um momento cômico (e danado), pedia para as crianças segurarem minha perna e braço esquerdo, enquanto, parte do meu corpo, do lado direito, ficou de fora do caminhão, só para eu enxergar com mais precisão o precipício da serra, querendo sentir adrenalina. Houve sim, o protesto dos adultos, mas no final, caímos em gargalhadas.

                       Outra função que me propus em fazer, era ajudar as velhas romeiras, que não lembravam dos trechos das músicas católicas, cantá-las todas, pois conhecia muitas delas e levei o hinário da Igreja. Era um momento lindo e poético, eu na frente das velhinhas, de pé; elas sentadas nos bancos de madeiras, e enquanto o pau de arara percorria as estradas do Piauí e Ceará; as planícies, cidades e serras do caminho, nos cantávamos.    

                No estado do Ceará, ao descer a Ibiapaba, no Noroeste, seguimos descendo, rumo ao sul do estado, onde se localizava a cidade de Juazeiro do Norte, já perto de Pernambuco. Chegamos na cidade de Padre Cicero no final entre 4h da tarde, segundo dia da viagem. Foi alugado um quarto, onde não sei como, coube todo mundo. E a estadia lá foi uma noite, a manhã e tarde do terceiro dia. Não descreverei sobre o que vi, vivi e visitei e as impressões sobre as práticas de romaria no Juazeiro, para não se alongar mais ainda a crônica de viagem, devido a mesma, objetivar homenagear Dona Moça, como também narrar o impacto maior, em minha espiritualidade e emoções, na segunda cidade, Canindé, onde encontrei São Francisco de Assis, me tornado um “franciscano”.     

                          Bem-dito, na manhã do quarto dia, chegamos em Canindé, distante mais de 400 km de Juazeiro. O motorista Luzimar (um romeiro que já tinha feito muitas vezes essas viagens), conhecedor dos lugares, nos levou logo para o alojamento dos Romeiros de São Francisco, mantido pela ordem (um casarão quadrado, todo avarandado no interior, onde se podia estender redes, havia banheiro, até cozinha com fogareiros, para se fazer comida na lenha ou no carvão), tudo muito simples, com o básico. Realmente, a maioria, os milhares de nordestinos, que faziam esta romaria, para Canindé eram pessoas pobres, sertanejos, adeptos do catolicismo popular, que na força da fé no Santo de Assis, através da misericordiosa multigraça de Deus, operava, de fato, milagres.

                    Sim, milagres, muitos. Quando fomos ver a bela basílica da cidade, construída em 1910, depois, ao derredor, a Casa dos Devotos (uma espécie de museu), que me impressionou. Diversas réplicas de pés, cabeças, pernas, pescoços, e tantas partes externas e interna do corpo humano, com seus órgãos, expostos como mostras de quer haviam alcançado uma graça de cura. Nas paredes, também contava com murais de fotos de centenas e milhares de pessoas visitantes de Canindé, mostrando através das fotografias alguma cura no corpo ou conseguiram um bem. Impossível, para quem acredita em Deus, na sua Graça Maravilhosa, estendida para todos os mortais, não ver a força da fé sendo honrada nas exposições. Eu acreditei no que me foi mostrado.

               Em nosso grupo, as pessoas tinham seus objetivos religiosos, no pagar suas promessas; fazer compras afins, visitar alguns lugares. Nesta manhã, depois de visitar a Catedral e a Casa dos Romeiros com os conterrâneos, onde Dona Moça, Mariana e alguns outros tiraram suas mantas marrons de promessa, jogando-as em uma espécie de baú aberto, cujo fundo de uns cinco metros, era um sótão. Os meus amigos romeiros, em maioria idosos, formaram seus grupos, mas eu que gosta de visitar sozinho os lugares, durante esse dia, a pé mesmo, pois a cidade na época chegava até pouco mais de 60 mil habitantes, pequena; porém, as estruturas das construções eram enormes, devido receber milhares de visitantes todo ano. Assim, sozinho, ouvindo um urro de leão, soube que havia perto o Zoológico Municipal, fui lá ver a fauna. 

                Depois, encontrei, também perto, um Museu Regional São Francisco, no qual o maior destaque era a história de São Francisco representada  em diversas manifestações das artes nordestina.  Havia bonecos de barros, gessos, madeiras etc., com características nossas, mostrando desde o nascimento até como foi a morte do santo de Assis. E à medida que, atentamente, olhava as peças representativas de episódios sobre Francisco, lendo as placas com as narrações, passei, como nunca dantes, conhecer São Francisco. Soube que nasceu em um estábulo, como Jesus; do porquê ele ter abandonado todas as riquezas e ostentações, após a conversão, depois de uma experiência traumática de uma guerra; como através dos bonecos, me tocou profundamente, quando ele, estão já alcançando um grau de santidade relevante, ao ser assaltado, os ladrões além de tira - lhe tudo, ainda o violentaram, jogando - o desmaiado em um buraco de neve. Após, se recuperar, ele, não guardou mágoa, continuou seu caminho, louvando ao seu Deus. O final, da exposição, mostrava como ele recebeu os estigmas, as marcas dos pregos e da lança romano do corpo do Cristo na Cruz, acontecimento, que o levaram logo depois sua morte, gloriosa. Sai do Museu, não somente emocionado e espiritualmente tocado, mas eu me tornei, não um devoto, igual os católicos romanos a São Francisco, mas um fã, um admirador do Francisco de Assis, acreditando ali que, depois do próprio Jesus Cristo, Francisco, foi o maior seguidor de Jesus entre todos os seus discípulos, até mais que os apóstolos Pedro e Paulo.  

                 Francisco de Assis, foi um santo com S maiúsculo. Um divisor de água na história da Igreja. Um ser humano profundamente cheio de Graça e do poder do Espírito Santo.  Poucos homens, seguidores de Cristo alcançaram a magnitude na alma e no corpo, ao ser um discípulo de Jesus. Ele realmente amou seu Deus, as coisas, os seres e as pessoas, até mesmo a morte. Foi um revolucionário do amor, havia me convencido disso. O restante do dia, ao visitar a Praça dos Romeiros — um anfiteatro ao ar livre com capacidade para mais de 120 mil pessoas, e de noite a Via Sacra, eu havia me tornado um franciscano crente. 

                 A viagem de volta, para o Maranhão, na madrugada do quinto dia, pelo norte do Ceará, via Tianguá, descende de noite a Serra, adentrando de noite o território do Piauí, mesmo não tendo a visão da Serra na vinda, não retiravam a felicidade que sentíamos.

                 Chegamos no sexto dia de viagem de volta em nossa cidade. Foram 4 dias na estrada, um dia no Juazeiro e um dia no Ceará. Havia realizado meu sonho de viajar em um Pau de Arara. Até hoje, 21 anos depois, foi uma das mais belas e emocionantes que participei. Foi mais que mera aventura com adrenalina, foi algo de espiritual. 

                    Outro marco bonito, foi o estreitar de amizades de passamos até com muitas pessoas. Nossa viagem, passemos anos relembrando os causos e ocorridos. Dentre estas pessoas, a que fiquei amigo mesmo, foi a Dona Moça. Desde então, sempre que nos víamos na rua, nos saudávamos com alegria. Ela possuía o dom do humor e do sorriso fácil. Quando passava caminhando em frente sua casa, minha mão era estendida e uma saudação era emitida. Muitas vezes, antes mesmo de entrar na casa de papai, tirava primeiro uma boa prosa com ela. Lamentávamos o Governo Federal ter proibido a ida ao Juazeiro e ao Canindé em Pau de Arara. A nossa viaje, em 2003, foram uma das últimas. Porém, Dona Moça e muitos dos meus companheiros foram em outros anos posteriores, mas em ônibus com ar-condicionado (que acho chato). Eu fui depois, três vezes ao Ceará, mas não mais como romeiro.

                      Nos últimos anos, trabalhando com os velhos da minha terra, em um esforço de guardar suas memórias, como testamento de nosso passado e peregrinar nesta parte do planeta, entrevistei Dona Moça, conhecendo toda sua história familiar, a migração para Maranhão do Ceará, onde ela nasceu em Sobral em 25 de junho de 1936.

                        Essa crônica é um pequeno memorial de uma grande experiência de viajem em um Pau de Arara que mudou muito conceitos em mim em relação partes da cultura do catolicismo romano e me tornou um grande admirador de São Francisco de Assis, o meu santo mais querido.

                         


Dona Moça, morreu há uma semana, na noite de terça feira, dia 12 de novembro, aos 88 anos, em nosso Garapa. Viajando, longe, não pode velar seu corpo; não pode dizer em um discurso o quanto gostava dela e o quanto sou grato a ela de me ter levado para a viajem no Pau de Arara. Papai, um dia antes de eu viajar, disse que ela estava ruim no hospital, planejei ir visitar – lá, mas esqueci na preparação desta viajem. Embora acompanhasse seu mal de Alzheimer, não sabia que ela estava prestes a fazer a última viagem da sua vida, por dimensões profundas, onde o destino seria o Paraíso, no qual neste lugar de risos e amor profundo – algo que sempre ela viveu na terra -  ela reencontrou seus ancestrais, seu esposo Luizana Bastos, sua Neta Mariana e pela primeira vez viu Jesus e São Francisco, nosso querido santo  de Assis, porém, para nós nordestinos e de cearenses como ela, o São Francisco de Canindé. 


SOBRE O AUTOR

FRANCISCO CARLOS MACHADO - Professor, escritor e poeta. Possui formação em Teologia, Especialização em Cultura e Metodologia do Ensino de História e Geografia; MBA em Assistência Social e Mestrado em Ciências Ambientais.

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